Considerações sobre os efeitos de perdas na atividade produtiva rural, decorrentes de caso fortuito ou força maior, na execução dos contratos
por José Carlos Vaz*

A caracterização de fatos naturais E a revisão contratual
A atividade produtiva rural é sempre vulnerável, com maior ou menor freqüência, com maior ou menor intensidade, com maior ou menor abrangência, a eventos naturais como chuva excessiva, geada, granizo, seca, variação excessiva de temperatura, ventos fortes ou frios, doença ou praga sem método difundido de combate, controle ou profilaxia que seja técnica e economicamente viável.
Tais situações, quando o produtor agiu com o zelo e cuidados devidos, são enquadráveis no que dispõe o artigo 393 do Código Civil de 2002, gerando efeitos sobre os contratos firmados com lastro na produção agropecuária prejudicada:
Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Parece-nos que, pelo contido no “caput” do artigo 393, caso o produtor entenda por assumir plena responsabilidade perante o credor, deverá fazer constar no contrato cláusula com expressão literal, direta e objetiva, com citação do artigo específico sob comento, da declaração do produtor/devedor como “responsável pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior”. Não basta prever cominações, que só terão validade se a responsabilização prevista no artigo 393 estiver claramente imputada.
Contratos e suas circunstâncias
Há quem considere que o produtor, quando se obriga a pagar crédito, em dinheiro ou produto, vinculado ao resultado da sua atividade, estaria pactuando um contrato aleatório, e, portanto, sujeito ao disposto no artigo 458 do Código Civil (“se o contrato for aleatório, por dizer respeito a coisas ou fatos futuros, cujo risco de não virem a existir um dos contratantes assuma, terá o outro direito de receber integralmente o que lhe foi prometido, desde que de sua parte não tenha havido dolo ou culpa, ainda que nada do avençado venha a existir”).
Para alguns, então, seria da natureza da atividade empresarial do produtor assumir os riscos da sua atividade. Ou seja, em sendo empresário o produtor rural, estaria de fato, sempre, ainda que não constasse no contrato cláusula explícita nesse sentido, fazendo a assunção de risco mencionada no citado artigo 458 (e no artigo 393).
Aqui também nos parece que a “assunção de risco” mencionada no artigo 458 deverá constar de cláusula específica no contrato, com expressão literal, direta e objetiva, e citação do artigo específico sob comento, da declaração do produtor/devedor como “responsável pelo cumprimento da obrigação de pagar/entregar, mesmo em ocorrendo caso fortuito ou força maior”.
Estando expressas a responsabilização (artigo 393) e a assunção (artigo 458) no respectivo contrato, então, toda obrigação não cumprida, por produtor, sob alegação de ocorrência de fato natural caracterizável como caso fortuito ou força maior, poderia ser executada, inclusive com cominações, pelo credor, com afastamento de pronto das escusas feitas pelo devedor?
Muitos operadores comerciais e financeiros do agronegócio, e alguns juristas, entendem que sim, especialmente depois que a Lei nº 13.874, de 2019, alterou a redação do artigo 421 do Código Civil de 2002, que passou desde então a dispor que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
Respeitosamente manifestamos nossa discordância, porquanto entendemos que a análise jurídica das situações sob comento deve considerar os princípios da dignidade da pessoa humana (o produtor e sua família), da função social da empresa (o estabelecimento do produtor, que se confunde com seu patrimônio pessoal) e, como citado no caput do artigo 421 do Código Civil de 2002, da função social do contrato.
Assim, entendemos que o contrato que gerar uma prestação e/ou uma cominação que resulte em redução substancial do padrão de vida e subsistência do produtor ou da sua família, ou inviabilize que ele possa formar a próxima lavoura/plantel e continuar na atividade, será abusivo.
Assim, na ocorrência de fato natural, cujos efeitos sobre a lavoura/plantel não foi possível ao produtor evitar ou impedir, e desde que tenha agido com zelo e dedicação razoáveis:
- o credor poderá exigir o pagamento da prestação devida, no prazo avençado, somente se houver cláusula expressa, literal, objetiva de responsabilização do produtor quanto a caso fortuito e força maior;
- ainda que aquela cláusula conste no contrato, o montante da prestação, se integral ou parcial, ficará subordinado à confirmação de estarem disponíveis ao produtor meios dignos de manutenção, e condições adequadas para formar a próxima lavoura/plantel;
- cominações, prejuízos, perdas e danos e similares também ficarão subordinadas à existência de cláusula própria, literal, clara a respeito, e só incidirão se o produtor não cumprir com a obrigação, ainda que alongada.
Também dizemos que os contratos com os produtores rurais não são aleatórios de forma absoluta, mas de forma relativa, devendo ser observado se as circunstâncias e expectativas das partes, vigentes quando assinado o contrato, destoam pouco ou muito da realidade verificada por ocasião da exigência da prestação, pois:
- as partes que os pactuam têm consciência das probabilidades de ocorrência de perdas em lavouras ou plantéis, por conta de eventos naturais;
- nas suas circunstâncias e por razões próprias, fizeram de forma tácita uma projeção conjunta de razoável possibilidade de obtenção do pactuado, estabelecendo informalmente uma simetria de entendimentos, que será desequilibrada na ocorrência de um caso fortuito ou de força maior em dimensão não considerada pelas partes na formação das suas expectativas, e com maior ou menor efeito sobre a execução do contrato conforme a situação financeira do produtor.
É mais do que Ortega y Gasset disse sobre o homem ser “o homem e a sua circunstância“: o contrato também é “o contrato e sua circunstância”, a atividade produtiva é “a atividade produtiva e sua circunstância”, as expectativas das partes também são “as expectativas das partes e sua circunstância”.
Possibilidade de caracterização de incidentes de mercado como justificadores da revisão contratual
Na parte final do ano-safra 2020/2021, alguns produtores pretenderam obter repactuações ou exonerações contratuais, alegando expressiva valorização de preço da soja, após a formalização do contrato e definição da relação de troca produto/insumos.
Acompanhamos o entendimento dos juristas que consideram ser inadmissível tal postulação, uma vez que quando da formalização do contrato, o produtor estava satisfeito, em tese, com o preço do produto e/ou a relação de troca por insumos.
Dizemos “satisfação, em tese” por ser o mercado de “barter” tão ou mais concentrado que o de crédito rural, sendo que neste atuam fortemente bancos públicos, e há supervisão pelo Banco Central e regulação pelo BCB e pelo Conselho Monetário Nacional, e naquele vigora a “liberdade para pactuar”.
Então, de certa forma é exeqüível mencionar uma possível “dominância de mercado” pelos grandes traders e fornecedores de insumos, o que pode dar fundamento a questionamento que eventualmente se faça quanto ao processo de formação dos preços e relações de troca, no âmbito de um contrato, bem como quanto à paridade/equilíbrio entre as partes atuantes na celebração do negócio.
De fato, nos negócios via “barter” há quase sempre pouca transparência quanto aos deságios praticados sobre o preço em bolsa, na formação do preço pago ao produtor rural. Também quanto aos preços dos insumos praticados nas compras à vista e nos contratos de “barter”, e quanto ao percentual das compras das “trading companies” que está plenamente “travado” em operações de “hedge. A nosso ver, tais referenciais deveriam constar no instrumento contratual.
Decisões judiciais
Com relação à discussão de preços em contratos a termo, há bom número de julgados que não recepcionaram reclamações de produtores rurais, sob o argumento de que poderiam ter feito hedge em mercados futuros, de opções ou a termo.
Contudo, tais julgados não podem ser seguidos e repetidos de forma meramente automática e repetitiva, sem análise individual do caso. Somente seriam corretos se o produtor fosse habitualmente um gestor de mercados financeiros, habilitado a tratar de swaps cambiais e entrada/saída de posições, com disponibilidade financeira para suportar ajustes de margens e exigência de garantias com periodicidade inferior à da obtenção das receitas rurais, com tempo suficiente para acompanhar o mercado e dar ordens de compra, venda ou aluguel de contratos e opções sobre estes. E mais, se houvesse oferta, a preços razoáveis, de contratos com liquidez e volume compatíveis com o local de produção e a natureza da produção formada pelo produtor em seu estabelecimento.
Portanto, são julgados sem cabimento, por falta de suporte fático, para a maior parte dos produtores rurais, os quais não têm o perfil acima descrito. E, mesmo naqueles contratos a termo de menor complexidade, nem sempre o produtor consegue “travar o preço” no melhor momento, pois a abertura de “janela para fixação de preço” fica sujeita ao livre arbítrio dos compradores.
Também há julgados que negam a pretensão do produtor que teve frustração de safra, alegando que ele poderia ter feito seguro. Tais juízos desconhecem a realidade fática de ausência de cobertura de apólices suficiente para toda a produção nacional, a custo razoável, com franquia pequena, ofertadas também em anos de maior risco climático.
E, como dito anteriormente, há grande diversidade nos impactos decorrentes das variações climáticas, conforme a longitude do estabelecimento rural, seus solo e relevo, o estágio vegetativo da planta, as técnicas produtivas utilizadas, a ocorrência e a intensidade de um La Niña ou um El Niño.
Revisão contratual em decorrência de eventos prejudiciais à atividade produtiva rural
Não é pequena a probabilidade de um contrato, cuja prestação (em moeda ou produto) esteja na dependência da perfomance produtiva de um estabelecimento rural, ser objeto de pedidos de revisão, pelo produtor, na ocorrência de eventos que, a seu ver, possam ser tidos como caso fortuito ou força maior.
Entendemos que, sobre os contratos direta ou indiretamente vinculados ao sucesso de um empreendimento rural, incidem diversas “forças jurídicas”, a saber:
- no estrito âmbito da relação de compromisso formada entre as partes, a orientação da aplicação dos princípios da boa fé e da segurança jurídica para a menor intervenção estatal sobre o pactuado, como forma de assegurar a continuidade das atividades empresariais vistas como um todo encadeado;
- imediatamente adjacentes àquela relação compromissória, os institutos que restringem a aplicação do princípio da função social da empresa ao mecanismo da recuperação judicial, e limitam o alcance da revisão contratual, mediante exigência de demonstração da ocorrência de fato imprevisível e extraordinário, e da comprovação de onerosidade excessiva para uma das partes, gerando dificuldade de persistência na atividade empresarial;
- no contexto da atividade produtiva rural, a sua vulnerabilidade típica, como comentado ao longo deste artigo, e a incidência dos princípios da segurança alimentar e da função social da propriedade, e objetivos definidos para a política agrícola, como o de propiciar “uso eficiente e sustentável dos meios de produção” e o “fortalecimento dos pequenos ou médios produtores”.
Quando produtor rural e financiador/comprador firmam um contrato com adiantamento de recursos e pagamento em moeda/produto no futuro, estão ambos conscientes de que a atividade tem um risco diferenciado, maior e mais volátil do que os de expressiva parte das demais atividades econômicas.
Mas isso não implica que o produtor está obrigado a arcar com compromissos mesmo quando ocorrer um fato extraordinário, cujos danos vão além das expectativas de perdas prováveis e usuais nas relações contratuais daquele mercado. E não é do interesse do credor causar a ruína do produtor, mas sim receber o pagamento.
Ou seja, até um determinado nível, os danos sobre a produção são “ordinários”, e não dão escusas compromissórias ao produtor. Acima de um dado nível, são “extraordinários”, e darão motivo para o reescalonamento do compromisso, mesmo que o credor não tenha auferido benefício com a onerosidade em desfavor do devedor.
Qual é o parâmetro a ser considerado para qualificar um evento como “ordinário” ou “extraordinário”? Aquele definido pelas partes, em contrato, ou aquele a partir do qual:
- uma parte, se tivesse consciência de que poderia ocorrer perda naquele montante, recusaria celebrar o contrato; ou,
- um produtor “padrão” perderia a capacidade de manter a propriedade em atividade empresarial.
As principais teorias aplicáveis à revisão de um contrato bilateral são a da imprevisão, a da onerosidade excessiva e da quebra da base objetiva. As duas primeiras estão incutidas no Código Civil de 2002, e a primeira no Código de Defesa do Consumidor, de 1990.
Nada obstante a revisão contratual ser instituto originado de disposições estatais atinentes a demandas com envolvimento de produtores rurais, como no Código de Hamurabi, as três teorias citadas, na forma como colocadas na legislação brasileira, demandam elementos que nem sempre estão presentes nas circunstâncias e no objeto dos contratos de crédito para produtor rural.
A razão dessas inadequações talvez tenham sido:
- a existência de legislação própria para o crédito rural (que por muitas décadas preponderou como quase que única forma de captação de recursos pelo produtor), esta sim ajustada às circunstâncias próprias da atividade produtiva, como é o caso do dispositivo MCR 2-6-9 já citado anteriormente;
- a predominância de uma organização empresarial não constituída como estrutura autônoma e segregada do patrimônio de seus constituintes, qual seja a propriedade rural, com seus frutos, confundida no patrimônio de uma pessoa natural.
A atualização da política agrícola (alicerçada em crédito rural, preço mínimo e proagro) não se deu na mesma intensidade com que os produtores, independente do porte, aumentaram a complexidade de suas relações contratuais, valendo-se:
- cada vez mais do “sistema privado” e menos do crédito rural (mas a equalização de taxas e os mecanismos de liquidez do crédito rural não podem ser usados nos contratos do “sistema privado”);
- cada vez mais dos mercados futuros ou a termo, e menos do preço mínimo (mas os mercados privados não têm o mesmo apetite ao risco embutido no preço mínimo, nem podem praticar prêmios sem necessidade de obtenção de resultado financeiro positivo);
- cada vez mais do seguro agrícola, do que do proagro (mas o subsídio ao prêmio, e o fundo de catástrofe são insuficientes para a necessidade de proteção).
Introdução
Parte I
Parte II
Parte IV
Parte V

*José Carlos Vaz é Advogado em Brasília-DF. Mestre em Direito Constitucional (Idp-DF) e especialista em Direito Empresarial e Contratos (Uniceub-DF). Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU, da Comissão de Direito do Agronegócio da OAB-DF, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM e do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Acesse http://www.jcvaz.adv.br
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