por Guilherme Medeiros*
Introdução
O crédito rural no Brasil é fundamental para o desenvolvimento do agronegócio, sendo regido por um arcabouço jurídico específico que visa garantir condições adequadas de financiamento para produtores rurais. O Decreto-Lei nº 167/67, que regulamenta a emissão de títulos de crédito rural, como a Cédula Rural Pignoratícia e a Cédula Rural Hipotecária, é um dos principais instrumentos legais nesse contexto. Aliado a isso, o Manual de Crédito Rural (MCR) estabelece diretrizes e normativas para o financiamento rural, incluindo mecanismos para prorrogação de contratos em situações de calamidade ou dificuldades financeiras.
Nos últimos anos, entretanto, tem-se observado uma prática crescente entre cooperativas de crédito e bancos: a substituição dos títulos de crédito rural pelo uso da Cédula de Crédito Bancário (CCB), regulada pela Lei nº 10.931/2004. Essa prática, além de afastar os benefícios específicos previstos no MCR, como a prorrogação de contratos, muitas vezes envolve a utilização de taxas CDI (Certificado de Depósito Interbancário) como indexador de contratos. Este artigo aborda as implicações jurídicas dessa prática, destacando o impacto para os produtores rurais e as possíveis violações às normativas de crédito rural.
1. O Regime Jurídico dos Títulos de Crédito Rural e o Manual de Crédito Rural (MCR)
O Decreto-Lei nº 167/67 foi criado para regulamentar os títulos de crédito rural, como a Cédula Rural Hipotecária, a Cédula Rural Pignoratícia e a Cédula de Crédito Rural. Esses títulos foram desenvolvidos especificamente para atender às necessidades de financiamento das atividades agrícolas, garantindo aos produtores rurais condições diferenciadas, como prazos estendidos e taxas de juros subsidiadas.
Além disso, o Manual de Crédito Rural (MCR), elaborado pelo Banco Central do Brasil, estabelece diretrizes claras para a concessão de crédito rural e a prorrogação de contratos de financiamento em casos de frustração de safra, intempéries climáticas ou outras circunstâncias que dificultem o pagamento. Essas normativas visam proteger o produtor rural, permitindo que ele renegocie suas dívidas sem incorrer em mora ou encargos moratórios adicionais.
2. A Cédula de Crédito Bancário (CCB) e a Utilização Indevida da CDI como Indexador
A Cédula de Crédito Bancário (CCB), regulamentada pela Lei nº 10.931/2004, é um título de crédito versátil que pode ser utilizado para formalizar diversas operações financeiras, inclusive aquelas envolvendo recursos de crédito rural. Diferentemente dos títulos especificamente previstos no Decreto-Lei nº 167/67, a CCB pode ser utilizada em operações de crédito rural desde que respeitadas as diretrizes do MCR. Muitos bancos, como o Banco do Brasil, emitem CCB com recursos controlados, o que vincula essas operações às normativas do crédito rural.
Uma prática que tem gerado controvérsia é o uso da taxa CDI como indexador de contratos firmados por meio da CCB. A Súmula 176 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabelece que “é nula a cláusula contratual que sujeita o devedor a taxas de juros divulgadas por entidades que não sejam estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN)”. No entanto, é importante destacar que a CDI atua como um índice de correção monetária, não definindo, por si só, a aplicabilidade das normas do MCR. A aplicabilidade do MCR depende de outros fatores, como a origem dos recursos e a natureza da operação, e não diretamente do indexador utilizado.
3. A Substituição dos Títulos de Crédito Rural pela CCB: Impactos e Violações ao Manual de Crédito Rural (MCR)
A substituição dos títulos rurais tradicionais, regulamentados pelo Decreto-Lei nº 167/67, pela CCB tem causado prejuízos aos produtores rurais. Essa substituição pode impedir o acesso às prerrogativas do crédito rural, como a possibilidade de prorrogação de contratos em momentos de crise, e envolve a aplicação de taxas de juros flutuantes, como a CDI, que são legais como índice de correção, mas não definem automaticamente a aplicabilidade do MCR.
Ao utilizar a CCB em vez dos títulos de crédito rural, as instituições financeiras podem afastar as proteções estabelecidas pelo MCR. A prorrogação de contratos de crédito rural, por exemplo, é uma medida essencial em casos de frustração de safra ou intempéries climáticas, possibilitando que os produtores renegociem suas dívidas sem incorrer em mora. No entanto, quando o financiamento é feito por meio de CCB sem recursos controlados, essas garantias podem não ser aplicáveis, o que coloca o produtor em uma situação de maior risco financeiro.
4. A Análise Crítica de Lutero Pereira sobre a Cédula de Crédito Bancário (CCB)
O doutrinador Lutero Pereira, em suas análises sobre o crédito rural, levanta uma crítica contundente à Cédula de Crédito Bancário (CCB), apontando que este título de crédito traz consigo um vício de origem que afeta sua validade e eficácia. Segundo Pereira, a CCB sofre de um problema de higidez, ou seja, uma inconsistência em sua base legal e constitucional, resultado de uma falha na elaboração legislativa.
Pereira argumenta que a Lei nº 10.931/2004, que criou a CCB, infringiu a Lei Complementar nº 95/1998, que estabelece normas para a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis no Brasil. Essa lei complementar traça os princípios da técnica legislativa, incluindo a clareza, precisão e concisão dos textos legais, com o objetivo de evitar ambiguidade e garantir a consistência das normas.
O vício apontado por Lutero Pereira reside no fato de que a CCB, ao tentar atender a múltiplas finalidades financeiras, acaba por se tornar um instrumento ambíguo e inadequado, sem uma definição clara de sua aplicação. Isso gera insegurança jurídica, especialmente no contexto do crédito rural, onde as normativas específicas do MCR são fundamentais para proteger os direitos dos produtores rurais. A falta de higidez da CCB compromete sua adequação ao regime de crédito rural, afastando as garantias previstas no Decreto-Lei nº 167/67 e no MCR, em benefício de condições mais favoráveis para as instituições financeiras.
5. Reflexos para os Produtores Rurais e o Cumprimento das Normativas do Manual de Crédito Rural (MCR)
A substituição dos títulos de crédito rural pela CCB, aliada ao uso da CDI como indexador e ao vício de origem apontado por Lutero Pereira, impacta diretamente a sustentabilidade financeira dos produtores rurais. Ao deixar de utilizar os instrumentos previstos no Decreto-Lei nº 167/67, as instituições financeiras podem retirar do produtor a possibilidade de acessar as prerrogativas do crédito rural, como taxas de juros subsidiadas e a prorrogação de contratos em circunstâncias adversas.
A utilização da CDI também pode resultar em um aumento dos encargos financeiros para os produtores, que ficam sujeitos a taxas de juros interbancárias voláteis. Isso se afasta das condições estáveis e previsíveis que são essenciais para o planejamento e a manutenção da atividade agrícola. No entanto, é importante reforçar que a CDI, enquanto cláusula de correção monetária, não define a aplicabilidade das normativas do MCR, e as proteções previstas podem se aplicar dependendo da origem dos recursos.
6. Necessidade de Maior Regulamentação e Proteção aos Direitos dos Produtores Rurais
Diante da crescente substituição dos títulos de crédito rural pela CCB e da aplicação da CDI como indexador, além das críticas apontadas por Lutero Pereira sobre o vício de origem da CCB, é urgente que o legislador e os órgãos reguladores promovam ajustes nas normativas. É fundamental que as operações de crédito rural, independentemente do título utilizado, estejam submetidas às disposições do Manual de Crédito Rural (MCR), garantindo aos produtores acesso às mesmas proteções e prerrogativas, inclusive a possibilidade de prorrogação dos contratos.
Além disso, é necessário reforçar a aplicação da Súmula 176 do STJ, impedindo que as instituições financeiras utilizem a CDI como indexador em operações de crédito rural de forma que prejudique os produtores, assegurando que os contratos respeitem o regime jurídico específico do setor agropecuário. Conclusão
A proteção dos direitos dos produtores rurais, especialmente no contexto de crédito, é crucial para a sustentabilidade do agronegócio brasileiro. A substituição dos títulos rurais tradicionais pela CCB e o uso de indexadores inadequados, como a CDI, podem comprometer a segurança jurídica e afastar as garantias essenciais previstas no Manual de Crédito Rural (MCR). Portanto, é imprescindível que as normativas sejam rigorosamente aplicadas e que os produtores rurais estejam plenamente conscientes dos riscos envolvidos em tais operações.
Referências
BRASIL. Decreto-Lei nº 167, de 14 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre títulos de crédito rural. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
BRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre a Cédula de Crédito Bancário e outros temas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Manual de Crédito Rural (MCR). Disponível em: http://www.bcb.gov.br.
PEREIRA, Lutero de Paiva. Financiamento Rural. 4ª Edição. Curitiba: Juruá Editora, 2023. Somente com uma regulação adequada e uma aplicação correta das leis será possível garantir um ambiente justo e sustentável para o crédito rural no Brasil.
*Guilherme das Neves Medeiros é Advogado especialista em agronegócio, crédito rural e seguro agrícola, com ampla experiência em soluções jurídicas voltadas para o financiamento rural e proteção dos direitos dos produtores. Atua no Escritório WBA Advogados, referência no assunto, e é autor de diversos artigos sobre temas relacionados ao agronegócio e crédito rural.

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