por Alexandre Valente Selistre*
A evolução do Direito das Coisas no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais, merece uma digressão histórica, pois reflete uma trajetória moldada pela vastidão territorial e pela vocação agropecuária do país. Ao lado dessa vocação, persiste a histórica insegurança fundiária, que ainda hoje impõe desafios, especialmente no contexto do direito agrário aplicado ao agronegócio. Diante disso, o estudo da posse adquire relevância singular, mormente frente a nova onda de invasões neste “abril vermelho”.
Desde a Antiguidade, o Direito Romano elaborava conceitos de propriedade que, embora considerados absolutos — oponíveis erga omnes, exclusivos e perpétuos —, passaram por distintas fases, como a propriedade quiritária, pretoriana, provincial e peregrina. Tais concepções evoluíram durante os períodos clássico e pós-clássico até a codificação justinianéia, quando foram sistematizadas e consolidadas (Marky, 1995; Cretella Júnior, 1995; Hironaka e Chinelato, 2005).
Com a Idade Média, surge o modelo da propriedade feudal, marcado por uma pluralidade de domínios — direto e útil — vinculados por relações de servidão e vassalagem. O sistema expressava não apenas estruturas jurídicas, mas também relações de poder e organização econômica (Gischkow, 1988; Gomes, 2001; Cavedon, 2003). Esse paradigma foi rompido com a Revolução Francesa, quando a burguesia consolidou a ideia da propriedade privada como um direito individual, desvinculado de privilégios aristocráticos (Monteiro, 1982; Cortiano Júnior, 2001; Grossi, 2021).
No Brasil, o regime colonial conviveu com diferentes formas de acesso à terra: desde os legítimos sesmeiros, até ocupantes de terras devolutas ou sem qualquer título legal, em meio ao Donatarismo, ao sistema de sesmarias e à política de imigração. O termo “devoluto” passou a designar, residualmente, as terras que, não apropriadamente exploradas pelo particular, retornavam ao domínio público (Cretella Júnior, 1990; Di Pietro, 2014). Essas incluem terras indígenas, áreas de fronteira, terrenos de marinha, entre outras sem titularidade formal (Meirelles, 2004; Medauar, 2011; Rizzardo, 2015), conforme sintetizado por Vilela (2017): “Terras devolutas são as terras doadas, mas devolvidas à Coroa ou à União, por não terem sido devidamente utilizadas.”
A Lei de Terras nº 601/1850 — o “Estatuto das Terras Devolutas” — marcou o início de uma política fundiária oficial, que evoluiu com a Primeira Constituição Republicana (1891) até alcançar o texto constitucional de 1988. Durante esse percurso, manteve-se o modelo de propriedade privada absoluta, individualista e perpétua (Rizzardo, 2013), posteriormente alçada a direito fundamental por integrar a ordem econômica. Ainda assim, o ordenamento passou a admitir limites à propriedade, especialmente a partir da função socioambiental (Gonçalves e Ceréser, 2013; Cavedón, 2013), bem como formas de intervenção estatal, como a requisição e a desapropriação, desde que em nome do interesse coletivo.
Apesar de diversas tentativas de regulamentar o setor agrário por meio de códigos rurais, o modelo civilista mostrou-se insuficiente para lidar com as especificidades do campo. Foi a Emenda Constitucional nº 10/1964 que atribuiu à União competência para legislar sobre questões agrárias, culminando no Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), considerado o marco fundante do Direito Agrário autônomo no Brasil (Gonçalves e Torma, 2020). Inspirado na Teoria da Empresa e em experiências estrangeiras — como a italiana, idealizada por Bolla em 1922 — o Estatuto reconhece a função social da propriedade rural como princípio estruturante e indispensável para a efetivação da Reforma Agrária.
Segundo Sodero (1979), a característica que distingue a atividade agrária das demais é a Agrariedade, conceito cunhado por Carrozza (1972) e fundamentado na teoria agrobiológica de Carrera (1978). Isso porque, apesar dos avanços tecnológicos, a agropecuária segue condicionada a fatores naturais e edafoclimáticos que lhe são inerentes (Selistre, 2022).
Entretanto, para que se possa exercer a atividade agrária, é necessário o acesso à terra. A Reforma Agrária, nesse contexto, ultrapassa a simples redistribuição de glebas: trata-se de fornecer meios técnicos e financeiros para a produção sustentável e eficiente, com uso de tecnologia, crédito rural e gestão profissional (Paiva, 1985). Sem isso, o processo serve apenas como instrumento político, gerando subemprego, favelização rural e intensificação do êxodo (Gursen de Miranda, 2019).
Empreender no agronegócio exige coragem — mas ela só se sustenta com estabilidade. E, no campo, essa estabilidade começa pela segurança jurídica da posse. Sem titularidade ou respaldo mínimo, a legitimidade do produtor para defender sua terra fica fragilizada, dificultando o investimento e a continuidade da atividade rural.
A proteção da posse é um direito assegurado pelo ordenamento jurídico, por meio de ações específicas: o interdito proibitório (para prevenir ameaças), a manutenção de posse (em caso de turbação) e a reintegração de posse (diante de esbulho). Essas medidas servem para proteger quem trabalha a terra com dedicação, independentemente do tamanho da área ocupada.
Além disso, o Código Civil, no §1º do art. 1.210, permite o chamado Desforço Pessoal — forma de autotutela legítima, desde que proporcional e moderada. Essa medida, no entanto, não autoriza a criação de milícias ou a justiça com as próprias mãos, tampouco pode ser confundida com o exercício arbitrário das próprias razões (crime previsto no art. 345 do Código Penal).
O produtor rural precisa de segurança para trabalhar — não de ameaças como as promovidas neste recente “abril vermelho”, com invasões coordenadas pelo MST. Invasão de terra é crime, e não pode ser tratada como movimento legítimo ou instrumento de reforma agrária.
Vale lembrar que a posse contínua, pacífica e de boa-fé pode, conforme os requisitos legais, evoluir para propriedade por meio da usucapião (arts. 1.238 a 1.240 do Código Civil). Contudo, empregados rurais, arrendatários ou ocupantes eventuais não têm posse qualificada para tanto, pois sua permanência é subordinada à vontade do proprietário, contrato ou permissão.
O campo não pode ser palco de incertezas jurídicas. O produtor rural, que investe, preserva e alimenta o país, precisa de garantias claras. E isso passa, necessariamente, pela defesa firme da legalidade, da posse e propriedade privada e da ordem jurídica.
Uma reforma agrária democrática pressupõe justiça social, produtividade e diálogo institucional livre de ideologias. A proposta exige envolvimento plural e imparcial de agentes públicos e privados (Reale, 1985). O artigo 12 do Estatuto da Terra afirma que a propriedade rural deve atender à sua função social, conforme prevê a Constituição. Contudo, tal exigência não se estende à posse. A extensão do princípio da função social à posse — ainda ausente no texto legal — poderia conferir maior segurança jurídica àqueles que detêm a terra de fato, mas não de direito (Zavascki, 2002; Arruda Alvim, 2009), reconhecendo a posse como fato jurídico (Mello, 2007).
Mas até que ponto isso é ideologicamente desejável?

*Alexandre Valente Selistre é bacharel em Ciências Jurídicas e Socias pela PUCRS, especialista em Processo Ambiental pelo IDC, pós-graduado em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio pela UNIP/I-UMA, Mestre e Doutor em Agronegócio pela UFRGS. Advogado Agrarista na Juchem Advocacia, leciona em pós-graduações, é autor de diversos capítulos de livros e artigos científicos e pecuarista.
Bibliografia consultada:
ARRUDA ALVIM. Problemas Registrais. Terras Devolutas. Usucapião. Contestação de Ação Reivindicatória. Revista de Processo, vol. 167, 2009.
CARRERA, R.R. Teoria agrobiológica del Derecho Agrario, Buenos Aires: Depalma. 1978.
CARROZZA, A. e ZELEDÓN, R.Z. Teoría general e institutos de Derecho Agrario. 1. ed., Buenos Aires: Editorial Astrea, 1990.
CARROZZA, A. Rivista di Diritto Agrário I. Milão, Casa Editrice Dott. A. Giuffrè. 1973.
CAVEDON, F.S. Função social e ambiental da propriedade, Florianópolis, 2003.
CORTIANO JUNIOR, E. O discurso proprietário e suas rupturas: prospectiva e perspectivas do ensino do direito de propriedade. 191 f. Tese (Doutorado em Direito) ‒ Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2001.
CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de Direito Romano: 19ª edição, Rio de janeiro 1995.
Di pietro, M.S.Z. Direito administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014.
Gischkow, E. Princípios de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 1988.
HIRONAKA, G.M.F.N. e CHINELATTO, S.J.A. Propriedade e posse: uma releitura dos ancestrais institutos. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 98, 2003.
GOMES, O. Direitos Reais – 18a. edição, atualizada por Humberto Theodoro Júnior – Rio de Janeiro, 2001.
GONÇALVES, A.I.Q. e CERESÉR, C.P. Função Ambiental da Propriedade Rural e dos Contratos Agrários. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2013.
GONÇALVES, A.I.Q. e TORMA, F. Direito Agrário Levado a Sério – episódio 8: O Direito Agrário e a sua origem. 2020. Disponível em: <Direito Agrário | “Direito Agrário Levado a Sério” – episódio 8: O Direito Agrário e a sua origem (direitoagrario.com)>. Acesso em abril de 2025.
GONÇALVES, A.I.Q. O Regramento Jurídico das Sesmarias (O cultivo como fundamento normativo do regime sesmarial no Brasil) Editora: LEUD, 2014.
GROSSI, P. O mundo das terras coletivas: itinerários jurídicos entre o ontem e o amanhã São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
MARKY, T. Curso Elementar de Direito Romano. 8ª edição, capítulo 8. 1995.
MEDAUAR, O. Direito Administrativo Moderno. 15ª de. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
MEIRELLES, H.L. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed. São Paulo: Malheiros. 2004.
Mello, M.B. Teoria do fato jurídico: plano da existência. -14. ed. ver. – São Paulo: Saraiva, 2007.
Miranda, G. Áreas constitucionalmente reservadas às comunidades tradicionais: garantia das comunidades e o agronegócio. In: Almeida, W.C. (org.) Direito Agrário e direito do agronegócio: estudos em homenagem à doutora Maria Cecília Elizabete Ladeira de Almeida. Londrina, Pr: Thoth, 2019.
MONTEIRO, W.B. Curso de Direito Civil, Direito das Coisas. 21. ed., São Paulo, 1982.
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Rizzardo, A. Direito das Coisas. 6ª ed. Rio de Janeiro : Forense, 2013.
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SODERO, F.P. Rivista di Diritto Agrário. Milão, Casa Editrice Dott. A. Giuffrè. 1979.
VILELA, M.L. A segurança jurídica da propriedade privada na faixa de fronteira. São Paulo: Leud. 2017. Zavascki, T.A. A Tutela da Posse na Constituição e no Novo Código Civil. In: Martins-Costa, Judith. A Reconstrução do Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.

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