por Bruno Alexandre Elias*

A Constituição Federal de 1988 consagra princípios e normas que evidenciam a relevância do crédito rural para o desenvolvimento econômico, o bem-estar social e a segurança alimentar da população.

O direito à vida e à saúde, diretamente relacionados à alimentação adequada, exige que o Estado assegure meios para a produção de alimentos, sendo o crédito rural um dos principais instrumentos para alcançar tal finalidade.

Nesse cenário, o crédito rural não apenas fortalece a produção agrícola, mas também garante a oferta de alimentos seguros e de qualidade, indispensáveis à saúde da população.

O abastecimento alimentar regular e suficiente constitui requisito essencial para a paz social, transformando o crédito rural em ferramenta estratégica para a manutenção da ordem pública e da coesão social.

O agronegócio brasileiro, por sua vez, figura como um dos pilares da economia nacional, responsável pela geração de emprego, renda e divisas por meio da exportação de produtos agrícolas.

Assim, o crédito rural exerce papel fundamental tanto no desenvolvimento econômico quanto na afirmação da soberania nacional, ao assegurar a autonomia produtiva e alimentar do país.

O dever estatal de fomentar o agronegócio concretiza-se, entre outros instrumentos, por meio das políticas de crédito agrícola. Exemplo emblemático é o direito assegurado ao mutuário de prorrogar a dívida rural em caso de inadimplemento decorrente de eventos adversos que comprometam sua capacidade de pagamento.

Essa proteção, prevista no Manual de Crédito Rural (MCR 2.6.4), reflete o compromisso do Estado com o desenvolvimento sustentável da agropecuária e com a preservação da segurança alimentar da população.

Trata-se, portanto, de assegurar condições mínimas para que o produtor continue produzindo, mesmo diante de crises climáticas, oscilações de mercado ou dificuldades estruturais.

Em outras palavras, o crédito rural constitui uma ferramenta de estabilidade e equilíbrio para todo o sistema agroalimentar nacional.

A ideia central é oferecer ao produtor recursos adequados para superar os desafios inerentes à atividade, como a possibilidade de concessão de prazos e épocas de reembolso ajustados à sua capacidade de pagamento, conforme estabelece o art. 50, V, da Lei nº 8.171/1991.

O Decreto-Lei nº 167/1967, em seu art. 13, reforça essa lógica ao reconhecer a necessidade de prorrogação da dívida rural em situações excepcionais, demonstrando a sensibilidade do legislador diante da realidade do campo e da importância de proteger o produtor rural dos efeitos danosos de eventos adversos.

Nesse mesmo sentido, ao instituir o crédito rural, o legislador conferiu ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a prerrogativa de alterar os prazos das operações, conforme previsto no art. 14 da Lei nº 4.829/1965.

Essa previsão traduz a compreensão do Estado acerca das peculiaridades da atividade agrícola e a necessidade de mecanismos que amparem o produtor em momentos de crise, prevalecendo, assim, o dirigismo contratual nos casos de alongamento ou prorrogação da dívida.

No âmbito desse conjunto normativo hierarquizado e interdependente, o Capítulo 2, Seção 6, Item 4 do MCR, norma cogente de aplicação obrigatória, dispõe sobre a possibilidade de prorrogação da dívida rural em cenários específicos, como nos casos de dificuldade temporária que impeça o produtor rural de saldar a dívida no prazo originalmente pactuado, desde que essa dificuldade seja decorrente de motivos que justifiquem a suspensão da obrigação de pagamento.

Com efeito, a Resolução não faculta às instituições financeiras a opção de conceder ou não a prorrogação: ela impõe uma verdadeira obrigação legal, decorrente do regime jurídico inderrogável do crédito rural e da natureza cogente, de ordem pública e vinculante do MCR.

Assim, demonstrado o estrito cumprimento dos três requisitos cumulativos expressamente previstos no item 2.6.4 do Manual de Crédito Rural — (i) dificuldade temporária de reembolso, (ii) nexo causal com evento adverso, como frustração de safra, dificuldade de comercialização ou problemas no fluxo de caixa, e (iii) capacidade futura de pagamento —, o produtor passa a ter assegurado o direito público subjetivo ao alongamento da dívida.

Nessas hipóteses, a prorrogação deve ser obrigatoriamente concedida, não se tratando de ato discricionário da instituição financeira, mas de dever jurídico inafastável.

A Súmula 298 do Superior Tribunal de Justiça atua como precedente de grande relevância, consolidando a obrigatoriedade da prorrogação em casos que atendam aos critérios legais. Seu teor é cristalino:

“O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas direito do devedor nos termos da lei.”

Se a legislação apenas reiterasse que os bancos têm a faculdade de prorrogar ou renegociar dívidas, estaria regulando algo desnecessário, já que qualquer credor, por sua própria vontade, pode conceder prazos, descontos ou até mesmo quitação.

A súmula, portanto, reafirma o caráter vinculante da norma e a natureza obrigatória da prorrogação quando presentes os requisitos legais.

No entanto, não raras vezes, ao se deparar com uma contestação, com um recurso de apelação ou com jurisprudência majoritária quase consolidada, o produtor rural e seu advogado enfrentam um novo “requisito” criado a partir de interpretação restritiva do Manual de Crédito Rural (MCR, item 2.6.4): o de que o requerimento administrativo apresentado após o vencimento da dívida seria intempestivo e, por isso, desprovido de eficácia para fins de prorrogação ou alongamento da operação.

Ocorre que tal tese pretende transformar uma recomendação operacional em condição legal de admissibilidade do pedido de prorrogação, o que não se sustenta.

Em primeiro lugar, o texto e a sistemática do MCR deixam claro que o instituto do alongamento/prorrogação previsto no item 2.6.4 foi concebido como medida excepcional e protetiva ao mutuário, autorizando a instituição financeira a prorrogar a dívida “desde que o mutuário comprove a dificuldade temporária para reembolso do crédito em razão de uma ou mais entre as situações abaixo, e que a instituição financeira ateste a necessidade de prorrogação e demonstre a capacidade de pagamento do mutuário”.

Dessa maneira, não há, no caput do dispositivo, disposição que condicione expressamente o exercício do direito à prorrogação à tempestividade formal de um requerimento protocolado antes do vencimento em termos absolutos.

A norma delega competência administrativa ao banco para avaliar a situação e autoriza a prorrogação quando demonstrados os requisitos materialmente relevantes. Assim, não cabe à instituição financeira negar esse direito com base em critérios unilaterais ou meramente administrativos, e muito menos ao Poder Judiciário criar um novo ônus.

Em segundo lugar, existe — e é importante reconhecê-la — orientação técnica e prática difundida pelo Sistema FAEP e por outras entidades de orientação ao produtor recomendando que o pedido de prorrogação seja protocolado com antecedência (por exemplo, “recomenda-se protocolar o pedido […] com pelo menos 15 dias de antecedência do vencimento”), bem como a juntada de laudo técnico e quadro de capacidade de pagamento.

Todavia, tal recomendação é de natureza orientativa/operacional, visando dar maior segurança administrativa ao procedimento, e não importando em imposição legal absoluta ao mutuário.

Não se pode aceitar que orientações administrativas de boas práticas criem, por via transversa, obstáculo ao acesso ao Judiciário ou fundamento para indeferimento automático de pedido que comprove a dificuldade temporária exigida pelo MCR.

O princípio da legalidade (princípio basilar da atuação administrativa) impõe que exigências materiais ou temporais que obstruam o exercício de direito previsto em norma só podem ser cobradas se houver previsão normativa expressa.

Portanto, se o legislador/normalizador tivesse pretendido impor a tempestividade do requerimento como condição sine qua non, o próprio Manual de Crédito Rural o faria de forma inequívoca, exatamente como ocorre em outras hipóteses do próprio MCR onde o regulador prevê requisito temporal expresso (por exemplo, dispositivos próprios para prorrogações específicas, como MCR 3.2.15 e MCR 11.1.4, que tratam de situações reguladas separadamente e contêm exigências procedimentais determinadas).

Assim, a interpretação extensiva que transforma orientação operacional em condição impeditiva viola o princípio da legalidade e do efeito protetivo que norteia o capítulo relativo ao crédito rural.

A jurisprudência, ainda que tímida, tem reconhecido a inexigibilidade do requisito de requerimento administrativo prévio quando demonstradas as circunstâncias de dificuldade que amparam a prorrogação, aplicando o MCR 2.6.4 como norma material apta a assegurar ao mutuário o direito ao alongamento.

Vê-se, a título exemplificativo, um caso patrocinado por nosso escritório em que conseguimos reformar uma decisão cujo principal argumento da instituição financeira foi a ausência de notificação administrativa no prazo regular.

Esse entendimento culminou em sentença de improcedência, fundamentada pelo magistrado na alegação de que não havia comprovação nos autos de que a parte autora havia formulado requerimento administrativo de alongamento da dívida antes do vencimento contratual.

Entretanto, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, na Apelação Cível n. 5642601-95.2024.8.09.0137, consignou expressamente a “inexigibilidade de requerimento administrativo prévio” e aplicou o disposto no MCR 2.6.4, diante da comprovação da dificuldade de comercialização, nos seguintes termos:

Direito Civil e Agrário. Apelação cível. Ação declaratória de prorrogação de dívida rural. Cédulas rurais hipotecárias. Alongamento de dívida. Requisitos legais comprovados. Direito subjetivo do mutuário. Aplicação do MCR 2-6-4. Inexigibilidade de requerimento administrativo prévio. Comprovação de dificuldade de comercialização. Inaplicabilidade do CDC. Redistribuição dos ônus sucumbenciais. Provimento parcial.

É inadmissível inovação recursal consistente em pedido de revisão contratual não formulado na petição inicial.

Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de crédito rural, utilizados como insumo para a atividade produtiva.

A ausência de requerimento administrativo prévio ao vencimento da dívida não afasta o direito ao alongamento da dívida rural previsto no MCR 2-6-4, desde que comprovadas a dificuldade de reembolso e a capacidade de pagamento.

Laudos técnicos que demonstram queda na receita por fatores externos são suficientes para caracterizar a situação de desequilíbrio econômico-financeiro que justifica o alongamento do débito.

(TJGO, Apelação Cível nº 5642601-95.2024.8.09.0137, Rel. Des. William Costa Mello, j. 30.07.2025, 1ª Câm. Cível)

Dessa forma, é juridicamente incorreto e injustificado que a instituição financeira utilize a suposta intempestividade do requerimento como fundamento único e automático para negar a prorrogação ou para atrair resolução contratual/executividade da dívida, sem analisar o mérito fático (frustração de safra, dificuldade de comercialização, impossibilidade temporária de adimplemento, laudos técnicos etc.).

A exigência de protocolo antecipado constitui mera recomendação de procedimento administrativo interno, não substituindo a análise material e a tutela judicial quando presentes os requisitos do MCR 2.6.4.

Por fim, espera-se que o Judiciário passe a invocar tal precedente em nome da uniformidade, da coerência e da segurança jurídica, promovendo maior previsibilidade e influenciando casos posteriores semelhantes, por meio do reconhecimento da inexigibilidade do requerimento administrativo prévio como condição absoluta.

Dessa forma, a análise da pretensão de prorrogação deverá se concentrar no mérito fático e probatório, observando-se o disposto no MCR 2.6.4, mediante a comprovação da dificuldade temporária de adimplemento e da capacidade de pagamento do mutuário, produtor rural.


LIVROS:

MEDEIROS, Guilherme das Neves. Manual de alongamento e prorrogação de contratos de crédito rural: teoria e prática. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2025.

PEREIRA, Lutero de Paiva. Alongamento de dívida rural: teoria e prática. 2. ed. Curitiba: Íthala, 2021.

PEREIRA, Lutero de Paiva. Manual jurídico do crédito rural. 2. ed. Curitiba: Íthala, 2021.

PEREIRA, Lutero de Paiva. Pressupostos constitucionais para o agronegócio. 2. ed. Curitiba: Íthala, 2023.

JURISPRUDÊNCIA:

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS (TJGO). Apelação Cível nº 5642601-95.2024.8.09.0137. Rel. Des. William Costa Mello. Julgamento: 30 jul. 2025. 1ª Câmara Cível.


*Bruno Alexandre Elias é Graduado em Administração, Ciências Contábeis e Direito, Advogado especialista em Direito, Contabilidade e Tributação do AgronegócioEspecialista em Direito do Agronegócio e Políticas Agrícolas.

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