Por Juliano Gonçalves Valli e Francisco Torma*

O Direito Agrário tem como principais características a imperatividade da normas e a incidência de regras sociais no que tange, principalmente, às relações de seus contratos. Como muito bem ensina um dos grandes doutrinadores do Direito Agrário pátrio, Wellington Pacheco Barros[1]: “A cogência, imperatividade do direito, portanto, se impõe porque suas regras seriam nitidamente protetivas ao trabalhador rural”, e ainda que: “as regras de direito agrário carregam com nitidez uma forte proteção social”.
Assim, as regras de natureza agrária, preponderantemente, na busca do equilíbrio da relação proprietário x terceiro cultivador/agricultor[2], agem com protecionismo expresso da parte considerada hipossuficiente na relação.
Ocorre que, atualmente, o desequilíbrio da relação entre o proprietário e o terceiro que exerce atividade agrícola em suas terras não se apresenta da mesma proporção de quando a norma agrária foi idealizada.
Da mesma forma, o fato de haver a necessidade de intervenção estatal para garantir a equidade na relação agrária não retira a importância desta mesma legislação trazer segurança jurídica mínima e suficiente para perfectibilizar os direitos do proprietário.
Neste condão, constatamos que não há norma expressa nos diplomas legais agrários, referente aos contratos agrários, que traga a garantia ou preferência do proprietário em receber o valor pactuado no contrato agrário em um eventual concurso de credores junto à produção do arrendatário, mesmo se a propriedade em questão seja a única fonte de renda do arrendador.
Em ocorrendo tal situação, o operador do direto precisa buscar amparo em princípios gerais e no outros ramos jurídicos como forma de buscar efetivar o direito do proprietário relativamente ao recebimento da contraprestação pecuniária decorrente do uso do seu imóvel rural.
Caso, por exemplo, o proprietário precise manejar ação executiva para o recebimento do arrendamento e utilize a medida de arresto (incidental ou acautelatório) sobre o produto oriundo da lavoura de seu arrendatário, não haverá preferência de trâmite e cumprimento deste perante outros arrestos que eventualmente venham a recair sobre o mesmo produto. O que haverá é uma ordem de preferência por deferimento da medida do crédito do proprietário para com os demais. Ou seja, uma preferência por ordem de chegada[3].
Eventuais CPRs sem origem mencionada, ou seja, negócios cíveis comuns consubstanciados em CPR (título abstrato que, ao contrário dos causais, não exige a descrição da origem para ter eficácia) tendem a preponderar perante crédito oriundo do contrato de arrendamento da própria terra por conta da costumeira garantia pignoratícia.
Entretanto, ao considerar e valorizar o vínculo direto deste crédito e o produto objeto da produção agropecuária, por meio do uso da hermenêutica e princípios do Direito Agrário, estamos dando vida à proteção do meio rural entabulada pelo Estatuto da Terra e legislação complementar. Isto porque os contratos típicos se destinam à regulamentar a posse provisória da terra, trazendo assim benefícios econômicos e sociais tanto para o proprietário como para o arrendatário, além de viabilizar a atividade econômica e a produção rural.
Ademais, em analogia a outros ramos do direito, relevante destacar que as receitas advindas de contrato de arrendamento devem ser observadas sob o prisma da natureza alimentar, o que as diferem e privilegiam em confronto com créditos comuns.
No Direito Civil, o Poder Judiciário brasileiro firmou entendimento de que as receitas provenientes de locativos (alugueres) possuem caráter alimentar em razão de que, em muitos casos, tal renda destina-se a sobrevivência do proprietário do imóvel.
Em razão desta conclusão, tal verba sequer pode ser penhorada, como podemos observar da notícia aqui colacionada:
Aluguel não pode ser penhorado quando serve para subsistência Se a renda de aluguéis for indispensável à subsistência dos locadores, não pode ser penhorada. Com esse entendimento, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região negou o pedido feito pelo INSS para penhora de aluguel de um casal de idosos. Os desembargadores mantiveram decisão de primeira instância. Cabe recurso. Os idosos alegaram que os valores recebidos a título de aluguel dos imóveis de sua propriedade são necessários à sobrevivência. Isso porque ambos são doentes e têm idade avançada, 76 e 71 anos. O INSS argumentou que os aluguéis são o único rendimento passível de penhora, uma vez que os outros bens já estão penhorados. Ressaltou que a requisição é de penhora dos aluguéis de apenas quatro dos sete imóveis que possui o casal. O relator, desembargador Carlos Fernando Mathias, disse que os documentos juntados aos autos, como as respectivas declarações de Imposto de Renda, revelaram a natureza alimentar da renda auferida pelos aluguéis. Isso impossibilita a penhora, conforme dispositivo legal (CPC, art. 649, IV). Segundo o relator, os aluguéis são a única fonte de renda e, portanto, equiparam-se a vencimentos, saldos e salários. Agravo de Instrumento 2005.01.00.063050-7/MG
Se o locativo comum, de origem urbana, reveste-se de caráter alimentar, o que dizer então do locativo rural – o arrendamento – que traz consigo toda a política nacional de desenvolvimento econômico e segurança alimentar? A segurança das relações jurídicas do campo é fundamental para a adequada manutenção da ordem social.
Neste sentido o TJRS já se manifestou:
O pleito da autora de liberação das sacas de soja bloqueadas ampara-se, justamente, nos valores que, a seu ver, necessariamente devem lhe ser pagos, seja em adimplemento da multa, seja a título indenizatório, em razão do uso da terra quando já havia determinação para desocupação.
Todavia, ao revés do que foi dito pela autora a multa, enquanto a lei determinar a sua reversão em favor da parte, em hipótese alguma será devida em caso de improcedência da ação, sob pena de se dar margem ao enriquecimento ilícito. Se, a exemplo do que ocorre no direito anglo-americano (contempt of court)1 ou mesmo no direito Alemão (Zwangsgeld)2 a multa fosse revertida ao Estado, se poderia entendê-la como devida independente do resultado da demanda3. Mas isto é questão de lege ferenda. Pelo que se tem atualmente no ordenamento jurídico, admitir a execução definitiva da multa seria correr o risco de premiar a parte que não tem razão, em detrimento daquela que tem. Daí, como diz TESHEINER4, “o processo deixa, assim, de ser um instrumento para a realização do direito material, para tornar-se meio de enriquecimento imoral e fonte de despotismo judicial”.
De outro lado, os valores referentes a indenização dependem de averiguação em feito próprio, que já está tramitando.
Desta forma, não há certeza de que valores serão devidos à autora, dependendo do resultando do julgamento de duas ações.
Todavia, a liberação das sacas de soja ainda se justifica em razão da plausibilidade do direito sustentado e do perigo de dano grave de difícil reparação, tendo em vista que os valores revestem-se de caráter alimentar.
(Agravo de Instrumento Nº 70015349160, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini, Julgado em 26/07/2006)
Se o crédito derivado da relação contratual agrária contempla único imóvel rural do proprietário, não possuindo este outra fonte de renda, maior ainda a importância de resguardo deste crédito como de natureza alimentar perante os demais.
Por oportuno, sob a exegese do Direito Civil, o Título X da Parte Especial do Código Civil estabelece a ordem que os créditos devem ser pagos ante uma situação de concurso de credores.
Conforme a norma civilista, a ordem de pagamento não acontece “por chegada”, mas sim pela natureza do crédito existente contra o devedor.
Em analogia à norma civilista, créditos quirografários que não possuam garantia real nem vinculação alguma com o produto a ser colhido não devem preponderar perante créditos que guardem relação direta com o produto e contemplem efetiva natureza alimentar. Estes gozam de privilégio especial ante o art. 964 do Código Civil, superando, evidentemente, os credores quirografários.
Vejamos o que diz a legislação suscitada:
Art. 964. Têm privilégio especial:
V – sobre os frutos agrícolas, o credor por sementes, instrumentos e serviços à cultura, ou à colheita; (destacamos)
A lei afirma, sem maior necessidade interpretativa, que tudo o que contribui com a produção agrícola sobre ela tem privilégio creditório.
Neste passo a legislação cita as sementes, instrumentos e serviços.
Sem dúvida alguma que o maior instrumento necessário à produção agrícola é a terra em que ela é cultivada.
Veja-se o conceito de “instrumento”:
ins·tru·men·to
sm
3 Meio utilizado para obter um resultado.
(Dicionário Michaelis online)
Ainda, do conceito publicado na Revista Cafeicultura:
Como em qualquer outra atividade, é preciso ter vocação para cuidar da terra. “É necessário o reconhecimento da sociedade de que a terra é instrumento de trabalho igual aos outros, depende de capacitação, do trabalho empreendedor e também de afinidade e amor à terra. Da terra, a pessoa pode tirar trabalho ou lucro, com dignidade”, defende Marcos de Abreu e Silva, da Faemg[4].
Desta forma, inequívoco compreender que a terra é um, senão o principal, dos instrumentos da produção agrícola.
Assim, faz parte do conceito dos instrumentos a que se refere o art. 964, V, do Código Civil, de forma que o arrendador – credor por natureza do uso da terra de sua propriedade – tem privilegio no recebimento dos alugueres relativamente aos frutos decorrentes do seu uso.
Por todo o exposto, vê-se que a preferência do crédito derivado da relação contratual agrária padece de normatização específica. Sem regramento expresso, o proprietário rural necessita de amparo em outros ramos do Direito para efetivar seu direito “alimentar” em eventual concurso de credores.
Da mesma forma que o interesse social foi basilar para a normatização do Direito Agrário, hoje mais do que nunca, este mesmo interesse social clama pelo protecionismo também do proprietário rural, player fundamental para a efetivação da política agrícola nacional.

JULIANO GONÇALVES VALLI é advogado, especialista em Direito Agrário e Ambiental, sócio do Escritório Medeiros & Valli, professor titular do curso de Direito da URCAMP (Centro Universitário da Região da Campanha) e membro da UBAU – União Brasileira dos Agraristas Universitários.

FRANCISCO TORMA é advogado agrarista, especialista em direito tributário, coordenador do portal AgroLei, membro da UBAU, professor de direito agrário, palestrante, colunista e escritor. Fundador do projeto “Direito Agrário Levado a Sério“.
[1] Barros, Wellington Pacheco, CURSO DE DIREIO AGRÁRIO. 9ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p.18.
[2] Particularmente não coadunamos com a generalização conceitual de proprietário x trabalhador rural, o que, sem o devido cuidado de aplicação, pode trivializar o conceito de proprietário rural como agente que não exerce a atividade agrária.
[3] Frise-se, que se considera aqui, o crédito do proprietário para com os demais de maneira genérica. Não consideramos preferências outras naturezas de crédito instituídas em lei própria, como por exemplo no caso da CPR perante outros créditos.
[4] http://revistacafeicultura.com.br/?mat=7761
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Boa tarde! Muito bom artigo, com informações bem relevantes ao mundo do arrendamento rural. Tenho um questionamento: como a jurisprudência tem encarado esse dilema do direito de preferência do arrendador?
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