Do direito de preferência do arrendatário e da (im)possibilidade de se adquirir somente a parte do imóvel objeto do arrendamento rural

Marcus Vinícius Ribeiro*

1. Contextualização a respeito do direito de preferência:

O Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964) é marcado por uma conotação social-protetiva, por meio da qual se tem o objetivo de proteger aquele que está desenvolvendo a atividade agrária (agricultura ou pecuária).

Dentre as muitas normas protetivas, importante destacar que o arrendatário tem a preferência na compra do imóvel quando em igualdade de condições com terceiros.

Essa preferência está tutelada pelo artigo 92, § 3º, do Estatuto da Terra, que assim dispõe:

Art. 92. § 3º No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda, a fim de que possa exercitar o direito de perempção dentro de trinta dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo.

A princípio, nota-se que, diferentemente da situação do locatário de imóvel urbano (art. 8º da Lei n. 8.245/1991), o arrendatário não precisa registrar ou averbar o seu contrato de arrendamento na matrícula do bem para ter seu direito de preferência assegurado.

Para mais, de acordo com a expressa letra da lei, é dever do proprietário e, até mesmo, do adquirente notificar o arrendatário acerca da alienação do bem, conferindo-lhe pleno conhecimento das condições do negócio. Logo, o arrendatário deve ser cientificado, a título exemplificativo, sobre o preço e acerca da forma de pagamento (principalmente sobre possíveis parcelamentos).

Assim, quando o proprietário e/ou o comprador dão conhecimento ao arrendatário sobre o teor do negócio, este tem o prazo de 30 dias para exercer ou não o seu direito de preferência.

Todavia, caso o proprietário e o comprador não interpelem o arrendatário a respeito da celebração da venda, o arrendatário pode exercer seu direito de preferência mediante o depósito do preço em juízo no prazo de seis meses (adjudicação compulsória), contados da transcrição do ato de alienação no Cartório de Registro de Imóveis competente, conforme estabelece o art. 92, §4º, do Estatuto da Terra.

Em claras e objetivas palavras, o arrendatário que não for notificado sobre a venda do imóvel rural pode depositar o preço em juízo e obter o bem para si. Inclusive, o prazo da contagem do prazo de seis meses para tal de depósito não se inicia na data da celebração do negócio, mas, sim, com a sua publicidade mediante a transcrição da escritura pública de venda e compra no Registro de Imóveis.

2. Do exercício da preferência apenas quanto à parcela do imóvel alienado:

De acordo com o que se expôs no tópico anterior, o arrendatário pode exercer o direito de preferência em duas hipóteses: (i) em 30 (trinta) dias a contar da notificação feita pelo proprietário ou pelo adquirente; ou (ii) quando não notificado, no período de seis meses após o registro do ato de alienação no Registro de Imóveis.

Contudo, diante dessas possibilidades conferidas ao arrendatário, surge o seguinte questionamento:  em se tratando de arrendamento somente de parcela do imóvel alienado, o direito de preferência pode ser exercido apenas quanto à parte arrendada ou deve ser feito quanto a todo o negócio (todo imóvel alienado)?

A questão, de acordo com os posicionamentos dos Tribunais pátrios, mostra-se controvertida, conforme se aclara nesta oportunidade.

2.1. Do entendimento majoritário:

O entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência é de que o direito de preferência deve ser exercido quanto a todo o negócio, sendo, então, inviável a aquisição apenas de parte determinada e arrendada.

Essa cognição se funda, primeiramente, na clara previsão normativa do art. 46 do Decreto n. 59.566/66, que assim prevê:

Art. 46. Se o imóvel rural em venda, estiver sendo explorado por mais de um arrendatário, o direito de preempção só poderá ser exercido para aquisição total da área.

§ 1º O proprietário de imóvel rural arrendado não está obrigado a vender parcela ou parcelas arrendadas, se estas não abrangerem a totalidade da área.

Em conformidade com o dispositivo acima, o exercício do direito de preferência do arrendatário está condicionado à compra de todo imóvel ou de toda a sua parte alienada.

Inclusive, esse posicionamento também é referendado pela maior parte da doutrina. Nessa perspectiva, Oswaldo Opitz e Silvia C. Opitz, dissertam que:

Se o imóvel rural é arrendado para mais de um arrendatário, o direito de preferência só poderá ser exercido para a aquisição total da área explorada. A matéria foi regulada pelo art. 46 do Regulamento. Como consequência desse princípio, temos que o proprietário do imóvel não está obrigado a vender parcela ou parcelas do mesmo, não só quando houver mais de um arrendatário, como também na hipótese de um único. O direito de preferência atinge a totalidade da área, por isso o art. 92, § 3º, do ET fala em imóvel arrendado e não em área arrendada[1].

No mesmo sentido dos referidos ensaístas, Helena Maria Bezerra Ramos, considerando a hipótese de existirem vários arrendatários de forma concomitante, também assevera que o proprietário não está obrigado a vender, parceladamente ou não, a fração correspondente ao arrendamento, quando este for parcial[2].

Não obstante, anuindo com o entendimento de ambos, Arnaldo Rizzardo também aduz que: “Se o imóvel rural em venda estiver sendo explorado por mais de um arrendatário, expedir-se-á comunicação a todos. Qualquer um deles que desejar a compra deverá expressar o interesse em função do todo, e não da parte por ele ocupada”[3].

Ademais, em termos de julgados em casos análogos, verifica-se que o entendimento do Supremo Tribunal Federal, quando da apreciação do Recurso Extraordinário de n. 86.400, de Relatoria do Min. Cunha Peixoto, e da Ação Rescisória 1117, de Relatoria do Min. Carlos Madeira, entendeu ser necessário o exercício do direito de preferência quanto a toda a área alienada e não só quanto àquela arrendada.

Posto isso, nota-se que a corrente majoritária julga como necessário o exercício do direito de preferência quanto a todo o negócio, isto é, de ser necessária a compra de todo o imóvel alineado (inclusive de partes que não eram arrendadas pelo arrendatário interessado na aquisição do todo alienado).

2.2. Do entendimento minoritário:

O posicionamento minoritário se pauta, de plano, num desrespeito à hierarquia legal por parte do Decreto n. 59.566/66, o qual em seu art. 46 dispõe sobre proibições que não constam na lei, isto é, no Estatuto da Terra.

Em termos claros, como o Estatuto da Terra não determinou que o direito de preferência deve ser exercido sobre toda área arrendada, o seu Regulamento (abaixo na hierarquia das leis) não pode impor tal limitação ao direito em questão.

Esse posicionamento já foi sustentado por decisões do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial de n. 32797/MG, de Relatoria do Min. Cláudio Santos, e no Recurso Especial de n. 171.396/SP, de Relatoria do Min. Waldemar Zweiter.

No primeiro julgado acima mencionado, o Relator assim dissertou em seu voto: “Outrossim, entendo que o direito de preferência do arrendatário fica adstrito à área arrendada, não podendo pretender exercer a prelação sobre a totalidade do imóvel”.

Já a ementa do segundo julgado supracitado afirmou o seguinte: “[…] I – O direito de preferência se restringe à área arrendada, não se amplia sobre maior extensão de terra, localizada no mesmo imóvel, que tenha sido objeto de venda. Interpretação do art. 92, § 4º do Estatuto da Terra […]”.

Para mais, a interpretação quando conduzida no sentido ora abordado, pode ser feita no sentido de tutelar a continuidade da atividade agrária. Assim, trata-se de um posicionamento que, ao menos prima facie, aproxima-se da conotação social-protetiva constante nas leis agrárias (Estatuto da Terra e seu Regulamento).

Pelo exposto, em conformidade com o presente posicionamento minoritário, o arrendatário tem direito de exercer a preferência tão somente com relação à área arrendada.

3. Da conclusão:

Ante o exposto, demonstrou-se que o arrendatário tem a faculdade de exercer o seu direito de preferência na aquisição do imóvel rural em duas hipóteses.

Na primeira destas, o arrendatário, quando notificado pelo proprietário ou pelo adquirente, pode, no prazo de 30 (trinta) dias adquirir o bem em idênticas condições ofertadas pelo adquirente.

Já na segunda possibilidade, o arrendatário, não interpelado sobre os termos da negociação feita com terceiro, pode, no período de seis meses após o registro do ato de alienação no Registro de Imóveis, depositar o valor do negócio em juízo e, consequentemente, ter o bem imóvel para si (adjudicação compulsória).

Entretanto, em se tratando de arrendamento parcial do imóvel alienado, surge a indagação sobre a possibilidade de o direito de preferência ser exercido apenas quanto à parte arrendada, ou seja, apenas quanto à determinada fração do imóvel alienado.

A respeito dessa questão, dois posicionamentos antagônicos se externam.

A primeira cognição, reputada como majoritária, fundamenta-se no art. 46, § 1º, do Decreto n. 59.566/1966, em cognição do Supremo Tribunal Federal e, ainda, em argumentos de ordem doutrinária.

Por outro lado, a segunda cognição, cuja expressão se evidencia de forma minoritária, calca-se numa possível transgressão à hierarquia das normas, uma vez que o Estatuto da Terra não prevê a vedação constante no seu Regulamento (Decreto n. 59.566/1966), bem como se baseia em posicionamentos firmados pelo Superior Tribunal de Justiça.  

Ante o exposto, para fins de segurança jurídica e pacificação da divergência, ousa-se sugerir que a questão seja objeto de previsão por parte do Estatuto da Terra ou por outra lei concebida com intuito de dispor sobre os contratos de arrendamento rural.


[1] OPITZ, Oswaldo; e OPITZ, Silvia C. B. Contratos no direito agrário. 5ª Edição revista e atualizada. Editora Síntese, p. 65.

[2] RAMOS, Helena Maria Bezerra. Contrato de arrendamento rural. 2ª Edição. Curitiba: Juruá, 2013, p. 128.

[3] RIZZARDO, Arnaldo. Curso de direito agrário. 3.ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 459.


*Marcus Vinícius Ribeiro: Advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Franca (FDF), com formação parcial pela Universidade de Coimbra (Portugal), pós-graduando em Agronegócios pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP/ESALQ), membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU), cofundador e vice-presidente da Liga Universitária de Agraristas (LUA).


Entre em contato conosco clicando na imagem abaixo:

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s