por Alexandre Valente Selistre*
A pecuária gaúcha é robusta, tradicional e dinâmica, destacando-se na cadeia produtiva da carne bovina no Brasil. Sustenta, entre outras práticas, o contrato de pastoreio — um instrumento agrário atípico, amplamente utilizado no campo, mas ainda carente de regulamentação específica na legislação brasileira. Essa lacuna tem gerado insegurança jurídica aos pecuaristas e interpretações jurisprudenciais pouco uniformes, especialmente no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).
Diferentemente do arrendamento ou da parceria rural, o contrato de pastoreio não é tipificado em lei, é atípico ou inominado, embora seja juridicamente válido com base no art. 425 do Código Civil e no art. 96, VII, do Estatuto da Terra. Na prática, trata-se de um acordo pelo qual o proprietário (ou possuidor) de uma área cede o uso da pastagem ao pecuarista, mediante contraprestação.
O termo “pastoreio” deriva do pasto — cobertura vegetal composta por gramíneas e forragens —, explorado para conversão em proteína animal. Essa relação contratual, majoritariamente verbal e fundada em usos e costumes, é autorizada pelo Decreto 59.566/66 (arts. 11, 13 e 39). Originário da cultura pecuária pampeana, o pastoreio reflete práticas entrelaçadas entre gaúchos, uruguaios e argentinos, com raízes profundas no bioma Pampa. Sua pouca bibliografia jurídica no Brasil leva os estudiosos a recorrer ao Direito Comparado para compreender sua natureza.
A principal ruptura com os contratos típicos ocorre ao se afastar das regras do Estatuto da Terra quanto ao prazo mínimo de três anos previsto para arrendamentos e parcerias pecuários (art. 95, II, e art. 96, I). Ao contrário, o contrato de pastoreio é firmado por tempo determinado, com duração máxima e improrrogável de um ano, respeitando sua natureza sazonal e oportunista — geralmente utilizado durante a entressafra, sobretudo no inverno, quando escasseia o pasto nativo.
Segundo Ghigino[1], no contrato de pastoreio, o proprietário ou possuidor do imóvel rural (Prestador do Pastoreio) recebe os animais do pecuarista (Tomador do Pastoreio), para cria, recria ou engorda, em troca de pagamento por cabeça ou “quilagem” (cálculo sobre percentual do ganho de peso após o gado ingressar nas pastagens). As partes podem optar entre duas modalidades:
a) Pastoreio Próprio: o Tomador entrega o gado ao Prestador, sem qualquer posse sobre o imóvel ou ingerência no manejo dos animais. Cabe ao Prestador zelar por eles, campereando, fornecendo pasto, água e medicações, em instalações adequadas. Custos de instalações (como alambrado ou cerca-elétrica), ou trabalhistas (enquanto mão-de-obra de peão), correm por conta do Prestador, remanescendo ao Tomador, os gastos com medicamentos curativos ou preventivos, ou serviços veterinários que se fizerem necessários durante o contrato, sob aviso do Prestador.
b) Pastoreio Impróprio, Pastagem ou Invernada: o Tomador do Pastoreio não perde contato com seu rebanho, encarregado de garantir o zelo pelos animais, de forma que existe flexibilização da posse desta área da pastagem, que é transferida ao pecuarista, pela anuência de entrada deste por parte do Prestador, independentemente do título, se por posse direta, indireta, por composse ou por mero ato de consentimento, que deverá constar expressa e inequivocadamente no contrato[2].
Mesmo com respaldo legal genérico, a ausência de regulamentação específica abre margem a confusões com contratos típicos, comprometendo a segurança jurídica e a correta análise judicial. Isso se reflete, inclusive, nas decisões do TJRS.
O que pensa o TJRS?
Em pesquisa realizada em 20/07/2023 no site do TJRS com o termo “contrato de pastoreio”, foram identificadas 49 decisões. Destas, apenas 14 foram proferidas entre 2017 e 2023. Seis não abordavam diretamente a natureza do contrato e foram desconsideradas[3].
As demais revelam um padrão preocupante: dificuldade em diferenciar o pastoreio de contratos típicos, ausência de critérios objetivos e tratamento genérico da matéria. Em alguns casos, o contrato verbal foi corretamente identificado como pastoreio, afastando, por exemplo, o direito de preferência na venda do imóvel. Em outros, houve desconsideração do papel do Prestador no manejo dos animais ou decisões baseadas exclusivamente em provas documentais frágeis, que contrastam com a realidade pecuária. Outro ponto bem sensível é a ótica civilista adotada por parte da jurisprudência, tratando os animais como meros bens semoventes, ignorando avanços normativos e científicos relacionados à senciência e ao bem-estar animal[4]-10.
O que essas decisões revelam? As decisões analisadas demonstram que:
✔️ Há interpretações inconsistentes sobre a natureza jurídica do contrato de pastoreio;
✔️ Falta padronização jurisprudencial, o que gera instabilidade;
✔️ Litígios são mal enquadrados, prejudicando ambas as partes;
✔️ Decisões desconsideram as peculiaridades do campo e as boas práticas de manejo animal.
O que fazer? Diante desse cenário, torna-se urgente:
• Reconhecer o contrato de pastoreio como figura agrária autônoma e legítima;
• Promover sua tipificação legal, com direitos e deveres bem definidos;
• Incentivar a uniformização da jurisprudência, com capacitação técnica dos julgadores em Direito Agrário;
• Modernizar a interpretação jurídica das práticas agrárias, de modo a compatibilizar tradição e segurança jurídica com a realidade do campo.
Essas jurisprudências demonstram a oscilação de entendimentos no TJRS, a dificuldade em reconhecer contratos agrários, distinguir o pastoreio de contratos típicos e, principalmente, a ausência de critérios objetivos na análise das responsabilidades das partes. A conclusão é clara: sem uma regulamentação específica, o contrato de pastoreio segue vulnerável à subjetividade judicial — o que coloca em risco a segurança jurídica no campo. E a segurança jurídica é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Sem ela, não há continuidade da produção nem atração de investimentos. O contrato de pastoreio é uma realidade viva da pecuária brasileira, já passou da hora de o Direito tratá-lo com a atenção que merece — com os pés firmes no estribo, levantando a aba do chapéu para enxergar mais longe no horizonte.

*Alexandre Valente Selistre é bacharel em Ciências Jurídicas e Socias pela PUCRS, especialista em Processo Ambiental pelo IDC, pós-graduado em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio pela UNIP/I-UMA, Mestre e Doutor em Agronegócio pela UFRGS. Advogado Agrarista na Juchem Advocacia, leciona em pós-graduações, é autor de diversos capítulos de livros e artigos científicos e pecuarista.
aselistre@juchem.com.br e valenteselistre@gmail.com
[1] GHIGINO, R.B.F. O contrato de pastoreio pecuário: teoria e prática. Editora Leud, São Paulo, 2020.
[2] SELISTRE, A.V.; GHIGINO, R.B.F.; BARCELLOS, J.O.J. Contrato de Pastoreio: do Direito Consuetudinário ao Positivo. Anais do IX Simpósio da Ciência do Agronegócio, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Centro de Estudos e Pesquisas em Agronegócios. Porto Alegre: UFRGS, 2021.
[3] ESPITALHER, M.B.; KROEFF, M.E.T. e SELISTRE, A.V. O Contrato de Pastoreio sob a visão agrarista no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Anais do 1° Encontro Científico Nacional de Direito Agrário, V Congresso Nacional de Direito Agrário. E-book. Londrina/PR: Ed. Thoth, 2023.
[4] Na Apelação Cível nº 70083634261, acertadamente o Tribunal afastou o direito de preferência por considerar que havia apenas contrato verbal de pastoreio, sem transferência de posse do imóvel rural, o que o diferencia do arrendamento agrário.
5 A Apelação Cível nº 70074105479 revelou confusão entre as figuras do arrendamento e do pastoreio, ao tratar a desocupação como despejo, indicando insegurança jurídica na delimitação das obrigações contratuais em contratos informais.
6 Nos julgados da Apelação Cível nº 70072027402 e dos Embargos de Declaração nº 70075283648, a Câmara entendeu que o prestador não era responsável por cuidados especiais aos animais, restringindo o contrato à disponibilização do campo, como se mero depósito fosse. A decisão revela visão civilista que contrasta com a perspectiva do bem-estar animal defendida pelo Direito Agrário contemporâneo.
7 Na Apelação Cível nº 70074346180, o Tribunal afastou a responsabilidade do prestador pelo desaparecimento de animais por ausência de prova contratual, ignorando meios de prova usuais no campo, como a movimentação de GTA, o que evidencia certo distanciamento da realidade agrária.
8 A Apelação Cível nº 70073222259 é exemplo positivo de distinção entre contrato de arrendamento e contrato de pastoreio, com adequada aplicação dos conceitos previstos no Estatuto da Terra e no Decreto nº 59.566/66, evidenciando sensibilidade técnica do julgador à matéria agrária.
9 Na Apelação Cível nº 70072027402 (julgada em 07/04/2017), a divergência sobre os limites da responsabilidade do prestador quanto aos cuidados com os animais levou à declinação de competência, reforçando a complexidade jurídica que envolve contratos verbais de pastoreio.
10 A Apelação Cível nº 70070430798 evidencia a dificuldade do Judiciário em lidar com litígios fundados em contratos informais de pastoreio, levando à remessa do feito por sua especificidade, o que reforça a importância de regulamentação e orientação técnica adequada.

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