Agronegócio, horas in itinere, reforma trabalhista e jurisprudência

trabalhoPor José Marcelo Leal de Oliveira Fernandes*

Um dos temas sensíveis ao Direito do Trabalho aplicado ao agronegócio é o relativo às horas in itinere, isto é, o tempo despendido no trajeto entre a residência do empregado e a efetiva ocupação no posto de trabalho e o respectivo retorno.

O art. 58, § 2º, da CLT, em sua redação dada pela lei 10.243/01 e com vigor até o início da vigência da lei 13.467/17 (reforma trabalhista), dispunha que, em regra, referido tempo não integrava a jornada de trabalho. Todavia, podia ser computado na jornada caso se tratasse de local de difícil acesso ou não servido por transporte público e o empregador fornecesse a condução.

A consequência dessa última hipótese é a condenação da empresa ao pagamento de horas extraordinárias se, com o cômputo das horas in itinere, o tempo total ultrapassar aquele estabelecido para a jornada de trabalho.

Sói acontecer, em diversos locais da zona rural brasileira, dificuldade de acesso a empreendimentos agropecuários e mesmo ausência de transporte público, o que implica a necessidade de o empregador rural fornecer o transporte. Por conseguinte, não são raras as condenações judiciais ao pagamento de horas extraordinárias, a título de horas in itinere, a empregadores do ramo do agronegócio.

É o que se pode verificar, por exemplo, das seguintes decisões proferidas pelo TST: acórdão exarado no AIRR-11171-67.2016.5.03.0071, pela 2ª Turma, sob relatoria da ministra Maria Helena Mallmann, e publicado no DEJT em 16/08/19; acórdão proferido no RR-236900-48.2009.5.18.0004, pela 2ª Turma, sob relatoria do ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, e publicado no DEJT em 20/04/12.

Nesse contexto, há uma particularidade relativa ao agronegócio: é usual, em normas coletivas concernentes ao setor, o estabelecimento de um limite para as horas in itinere.

Com relação a esse ponto específico, o TST vem adotando o entendimento de que é lícita a fixação, por norma coletiva, do tempo gasto pelo empregado no percurso de ida e volta ao trabalho, contanto que se observe, razoavelmente, o lapso efetivamente gasto pelo empregado nos percursos de ida e volta ao trabalho. Estabeleceu o critério de que o tempo prefixado para as horas de percurso deve representar, ao menos, 50% do tempo efetivamente gasto.

Nesse sentido, o acórdão proferido pela 3ª Turma do TST no Ag-AIRR-11455-75.2016.5.03.0071, de relatoria do ministro Mauricio Godinho Delgado e publicado no DEJT em 01/07/19, e o exarado pela 4ª Turma do TST no ARR-759-66.2014.5.15.0054, de relatoria da ministra Maria de Assis Calsing e publicado no DEJT 28/04/17.

Há decisões do TST apontando discrepância entre a limitação fixada em normas coletivas atinentes ao ramo do agronegócio e o tempo realmente despendido no trajeto, circunstância que enseja a declaração de invalidade da norma e a condenação ao pagamento das horas in itinere como extraordinárias.

É o que se nota do acórdão proferido pela 8ª Turma do TST, sob relatoria da ministra Dora Maria da Costa, no AIRR-25376-22.2017.5.24.0091, com publicação no DEJT ocorrida em 17/05/19, e do exarado pela 2ª Turma do TST no RR-392-69.2013.5.18.0191, publicado no DEJT em 07/12/18 e de relatoria da ministra Delaíde Miranda Arantes.

Sucede que – e este aspecto consiste no ponto nevrálgico da presente reflexão – a lei 13.367/17 (reforma trabalhista) deu nova redação ao art. 58, § 2º, da CLT, a qual dispõe, sem previsão de hipótese excepcional, que o tempo despendido no trajeto entre o lar e a ocupação do posto de trabalho, bem como para o retorno, não será computado na jornada de trabalho.

Por tratar-se de disposição legal nova, ainda carece de interpretação e uniformização jurisprudencial pelo TST.

Contudo, já se podem imaginar, e mesmo constatar, variadas discussões acerca dessa alteração, a exemplo de delimitação da aplicabilidade das redações antiga e atual, bem como o cotejo com as normas coletivas do setor do agronegócio.

Quanto à delimitação da aplicabilidade das redações do dispositivo legal, é, por ora, possível notar diversidade de soluções entre os Tribunais Regionais do Trabalho.

O TRT da 3ª Região possui decisões aplicando a redação antiga do art. 58, § 2º, da CLT aos fatos ocorridos anteriormente à vigência da reforma trabalhista; tem, portanto, limitado a condenação em horas extraordinárias ao período até 10/11/17 (acórdão proferido pela 2ª Turma do TRT3 nos autos de nº 0010490-05.2018.5.03.0079, de relatoria do juiz convocado Helder Vasconcelos Guimarães e publicado no DEJT em 11/04/19). A seu turno, o TRT da 7ª Região tem aplicado a redação anterior do aludido dispositivo às ações ajuizadas anteriormente à reforma trabalhista (acórdão exarado pela 1ª Turma do TRT7 nos autos de nº 0000302-05.2016.5.07.0016, de relatoria do desembargador Durval César de Vasconcelos Maia e publicado no DEJT em 22/11/19).

A atual disposição do art. 58, § 2º, da CLT pode repercutir, também, em tema que, infelizmente, por vezes ainda se faz presente no contexto trabalhista brasileiro, inclusive no agronegócio: o trabalho em condições análogas à de escravo. Isso porque a discussão sobre as horas in itinere tem, como visto, interferência na jornada de trabalho, e a submissão a jornada exaustiva, de acordo com o art. 149 do Código Penal é um dos elementos caracterizadores da redução a condição análoga à de escravo – valendo ressaltar que, para fins trabalhistas, a configuração pode ocorrer a partir de elementos mais amplos e prescinde da tipificação penal.

Conclui-se, destarte, pela importância de o TST, a fim de garantir segurança jurídica aos trabalhadores e empregadores rurais, uniformizar jurisprudência acerca das aludidas questões, tão logo seja instigado a fazê-lo. Até lá, é de bom alvitre que o empregador rural seja cauteloso ao aplicar o art. 58, § 2º, da CLT na gestão da jornada de seus empregados.

 

**José Marcelo Leal de Oliveira Fernandes é advogado atuante no Tribunal Superior do Trabalho, sócio do escritório Simpliciano Fernandes & Advogados, pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

**Artigo publicado originalmente no site Migalhas.

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