Como o Brasil pode ser fundamental para a agricultura africana

por Francisco Torma*

“Aquele que não cultiva seu campo, morrerá de fome” – Provérbio Africano.

Chamamos de Revolução Verde o incremento de tecnologias no setor rural destinadas ao aumento da produção, ocorrido principalmente no período compreendido entre as décadas de 1960 e 1970[i]. O termo foi criado pelo professor William Gown, mas seu conceito já era aplicado por Norman Borlaug desde os anos 1930[ii].

Antes da revolução, aqui no Brasil vivemos um período em que a produção destinava-se à sobrevivência dos habitantes da zona rural e o país importava alimentos, mesmo com um gigantesco território disponível. A partir do surgimento do Estatuto da Terra em 1964 e da Lei do Crédito Rural em 1965[iii], o salto produtivo foi tão intenso que em pouco tempo passamos a ser exportadores de alimentos, consolidando-se atualmente como um dos grandes players da produção de alimentos e commodities do planeta.

Portanto, o Brasil tornou-se um país voltado ao agronegócio a partir do incremento de políticas públicas que foram desenvolvidas no período da Revolução Verde. E ainda tem potencial para aumentar consideravelmente a sua produção sem que seja necessária a derrubada de vegetação nativa e protegida.

Entretanto, do outro lado do Oceano Atlântico, uma região tem tanto potencial quanto o Brasil para ser um grande produtor agrícola, mas anda a passos lentos quanto à aplicação dos conceitos da Revolução Verde: o continente africano.

Detentora de 65% das terras férteis não cultivadas do planeta[iv] mas ainda alicerçada na agricultura de subsistência, a África precisa enfrentar alguns gargalos já identificados há tempos: pouca infraestrutura, carência de políticas públicas, demasiada burocracia estatal, baixa tecnologia e pouquíssima mecanização.

Portanto, o que a África vive hoje é semelhante ao que o Brasil vivenciou antes da Revolução Verde. E é por esta razão que o Brasil pode contribuir com o desenvolvimento das atividades rurais africanas, em um sistema de cooperação entre nações que pode trazer benefícios para ambos os lados.

Moçambique e o ProSavana

Um caso emblemático e que serve de exemplo para esta análise é Moçambique. Trata-se de um país situado na região subsaariana, mais precisamente no sul do continente, com território de mais de 80 milhões de hectares e população de aproximadamente 28 milhões de habitantes. O agronegócio local corresponde a aproximadamente 20% do PIB nacional[v].

Em Moçambique existem aproximadamente 30 milhões de hectares agricultáveis, dos quais aproximadamente 17% estão sendo cultivados, quase na totalidade de forma manual[vi].

Este cenário propício para o desenvolvimento do agronegócio abrigou um dos maiores e mais polêmicos projetos para o desenvolvimento da agricultura em Moçambique, que foi encabeçado pelo governo local juntamente com os governos brasileiros e japonês.

Este projeto, denominado ProSavana, buscava desenvolver a agricultura empresarial e familiar na região conhecida como Corredor de Nacala, que se estende às margens de uma ferrovia que liga a cidade de Nichinga ao porto de Nacala[vii].

O projeto foi implementado a partir de 2010 e previa ações ao longo de 35 anos. No papel, a expertise brasileira em cultivar a região dos cerrados (semelhante ao bioma encontrado no Corredor de Nacala), a expertise comercial do Japão e a disponibilidade de terras de Moçambique criariam o cenário perfeito para fomentar a agricultura local e trazer desenvolvimento econômico e social aos povos da região.

Entretanto, a prática se revelou diferente da teoria. Diferentemente da abertura do cerrado brasileiro (especialmente no estado do Mato Grosso, modelo inspirador para o ProSavana), na região do corredor de Nacala haviam agricultores que já habitavam os imóveis e produziam sobre eles, o que não foi considerado na execução dos projetos. O programa, embora apresentasse medidas de desenvolvimento tanto para a agricultura empresarial como para a familiar, atuou com muito mais ênfase nos aspectos empresariais, deixando em segundo plano os agricultores familiares e sua história de produção no norte de Moçambique[viii].

Perto dali, em Gurué, agricultores locais teriam sido desapropriados pelo governo por valores ínfimos, cedendo suas terras para a instalação de uma sociedade comercial multinacional denominada AgroMoz[ix].

Estes impactos negativos junto aos povos rurais de Moçambique geraram uma pressão internacional sobre o ProSavana, fazendo com que os governos brasileiro e japonês suspendessem o programa, para, recentemente, encerrá-lo[x].

O novo Sustenta

Após o declínio do ProSavana, o atual governo de Moçambique tem apostado suas fichas no Sustenta, projeto de desenvolvimento agrícola sem interferência estrangeira que, segundo o Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural daquele país, busca integrar a agricultura familiar em cadeias de valor produtivas[xi].

O Sustenta divide os produtores em três categorias para fins de obtenção de crédito: pequeno produtor, produtor semi-comercial e produtor comercial. Outra subdivisão disponibiliza também o importante crédito para a agroindústria. Os juros vão de 0% a 12%, dependendo do tipo de crédito e do tipo de produtor.

Neste contexto, o Sustenta tem uma visão muito diferente do que foi efetivamente o ProSavana, já que o foco deste projeto é a agricultura familiar. Caso os recursos financeiros sejam suficientes para fomentar a atividade rural do país, certamente o projeto pode ser um divisor de águas para a agricultura africana.

A relevância do Brasil no desenvolvimento de Moçambique

Créditos: pordentrodaafrica.com

Especificamente no caso de Moçambique e sua procura pelo desenvolvimento do setor agrícola, inevitável concluir que, mesmo com a extinção do ProSavana, o Brasil pode participar diretamente neste processo.

Isto por conta da sua experiência em desenvolver a agricultura em regiões com semelhantes condições climáticas e de solo, o que gera a migração de um modelo de subsistência insustentável para a formação das cadeias produtivas agropecuárias.

Moçambique, assim como vários países africanos, precisa desenvolver a agricultura ao mesmo tempo em que desenvolve econômica e socialmente sua população rural e urbana. Para que isso aconteça, é fundamental que a agricultura familiar absorva os conceitos das cadeias produtivas do agronegócio, conceito este que norteia o desenvolvimento rural das nações desde seu surgimento em 1957, em Harvard[xii]. É importante destacar, também, que a agricultura familiar não é oposição ao agronegócio, mas sim uma subdivisão deste setor, complementando-se com a agricultura empresarial[xiii], ambas fundamentais para o desenvolvimento dos países produtores.

Neste contexto, o Brasil pode contribuir com Moçambique das seguintes formas:

Tecnologia de maquinário e implementos.  Um dos gargalos da África é a falta de mecanização. Aproximadamente 10% da sua produção é mecanizada[xiv]. Para que os produtores locais tenham produção suficiente para sair da subsistência e ingressar no mercado, é preciso mecanizar a produção. Neste sentido o Brasil vem desenvolvendo tecnologias desde o início da Revolução Verde. São máquinas e implementos destinados ao uso na produção familiar e que possibilitam o incremento na produtividade desejado pelos países africanos. Considerando as linhas de crédito existentes em Moçambique, o Brasil pode ser um fornecedor desde tipo de insumo para os produtores daquele país.

Tecnologia jurídica. O Brasil tem uma experiência muito positiva com a sua política pública voltada à agricultura familiar que é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF, e seu fiel escudeiro Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – PROAGRO. As soluções encontradas nestes programas, aliada ao arcabouço legal desenvolvido em torno da agricultura familiar, formam um importante base para o desenvolvimento de políticas desta natureza no continente africano. É possível partir das conquistas já experimentadas pelos produtores brasileiros para desenvolver soluções às demandas dos países Africanos. Da mesma forma, as experiências brasileiras relativas ao cooperativismo, condomínios rurais, contratos de integração vertical e títulos do financiamento privado podem ser aplicadas no contexto africano a fim de fomentar também a agricultura empresarial realizada pelo próprio povo daquele continente.

Ciências agronômicas e extensão rural: O ProSavana existiu justamente porque foi considerada a experiência brasileira na abertura do cerrado, principalmente no MT, no século passado, já que as condições climáticas, de solo e de vegetação se assemelham às encontradas em Moçambique. Desta forma, o conhecimento agronômico já desenvolvido no Brasil, aliado aos programas de extensão rural aqui desenvolvidos, são relevantes para o domínio da agricultura pelas nações africanas.

Desta forma, Brasil e Moçambique adotariam a cultura do ganha-ganha, onde cada uma das nações obteria resultados positivos desta parceria, ao contrário do que aconteceu com o falido ProSavana. Naquela situação, o povo de Moçambique percebeu que o viés do projeto era mais semelhante a uma colonização moderna do que efetivamente a procura pelo desenvolvimento local.

Assim, é importante que a integração entre países respeite a cultura ancestral do povo africano. Não é possível levar soluções prontas, mas sim utilizar da experiência brasileira como modelo de partida para o desenvolvimento de projetos que atendam a necessidade daquelas comunidades.

Algo semelhante, por exemplo, ocorreu de forma tímida em 2012, quando a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO)  buscou aplicar o modelo do Programa de Aquisição de Alimentos para algumas nações africanas[xv]. Entretanto, o Brasil tem tecnologias jurídicas mais relevantes para contribuir para a agricultura africana, focadas na produção e inclusão dos produtores nas cadeias do agronegócio.

Portanto, o Brasil pode ser fundamental para o desenvolvimento da agricultura em Moçambique e outros países africanos, principalmente no fornecimento das tecnologias que já domina por ter desenvolvido, em seu território, agricultura econômica e socialmente sustentável, ao mesmo tempo em que figura como uma das nações que mais protege os recursos naturais dentro das propriedades privadas.

Esta relação, onde o Brasil fornece as necessárias tecnologias para que o povo africano desenvolva sua agricultura de forma inclusiva, sem que exista qualquer relação de colonialismo entre as nações, pode acelerar grandemente o desenvolvimento daquele continente, principalmente em relação à sua soberania alimentar, ao mesmo tempo em que abre mercado internacional para as nossas soluções tecnológicas aplicadas ao agronegócio.


*FRANCISCO TORMA é advogado agrarista, especialista em direito tributário, pós-graduando no MBA em Agronegócio ESALQ/USP, coordenador do portal AgroLei, membro da UBAU, professor de direito agrário, palestrante, colunista e escritor. Co-fundador do projeto “Direito Agrário Levado a Sério“.


REFERÊNCIAS:

[i] REVOLUÇÃO VERDE. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/revolucao-verde.htm. Acesso em: 20 ago. 2021.

[ii] COMO OCORREU A REVOLUÇÃO VERDE? eCycle. Disponível em: https://www.ecycle.com.br/revolucao-verde. Acesso em: 23 ago. 2021.

[iii] TORMA, Francisco. Endividamento rural: renegociações de dívidas do crédito rural e suas consequências para o produtor. In: PARRA, Rafaela Aiex. DIREITO APLICADO AO AGRONEGÓCIO: UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR. 1. ed., Londrina: Editora Thoth, 2018, p. 301.

[iv] ÁFRICA PODERIA ALIMENTAR O MUNDO INTEIRO. Rede SANS. Disponível em: http://redesans.com.br/africa-poderia-alimentar-o-mundo-inteiro/. Acesso em: 9 ago. 2021.

[v] MUIANGA, Carlos. A ECONOMIA DE MOÇAMBIQUE E OS CONFLITOS E TENSÕES À VOLTA DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO AGRÍCOLA. Disponível em: https://www.iese.ac.mz/wp-content/uploads/2020/12/CMuianga-Desafios-2020.pdf Acesso em: 20 ago. 2021.

[vi] DESAFIOS DA AGRICULTURA EM MOÇAMBIQUE. Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xGNnKxUBal8. Acesso em: 5 ago. 2021.

[vii] PROJETO PROSAVANA. Câmara de Comércio, Indústria e Agropecuária Brasil-Moçambique. Disponível em: http://www.cciabm.com/informacoes/projeto-prosavana. Acesso em 23 ago. 2021.

[viii] PROSAVANA: O PROJETO QUE ENFRENTOU RESISTÊNCIA DE CAMPONESES EM MOÇAMBIQUE E NO BRASIL. Conexão          Lusófona. Disponível em: https://www.conexaolusofona.org/prosavana-o-projeto-que-enfrentou-resistencia-de-camponeses-em-mocambique-e-no-brasil/. Acesso em: 20 ago. 2021.

[ix] O PLANO DE TRANSFORMAR MOÇAMBIQUE EM UM MATO GROSSO. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vLMfEOTGDv4&t=334s. Acesso em: 23 ago. 2021.

[x] FIM DO PROSAVANA: UMA OPORTUNIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA EM MOÇAMBIQUE? DW. Disponível em: https://www.dw.com/pt-002/fim-do-prosavana-uma-oportunidade-para-o-desenvolvimento-agr%C3%ADcola-em-mo%C3%A7ambique/a-54339235. Acesso em: 23 ago. 2021.

[xi] SUSTENTA. Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural. Disponível em: https://www.fnds.gov.mz/index.php/pt/recursos/destaques/131-programa-sustenta-2. Acesso em: 20 ago. 2021.

[xii] QUERUBINI, Albenir; ZIBETTI, Darcy Walmor. O Direito Agrário e sua relação com o Agronegócio. In: PARRA, Rafaela Aiex (org.). Direito aplicado ao agronegócio: uma abordagem multidisciplinar. 2. ed., Londrina: Editora Thoth, 2019, p. 80.

[xiii] TORMA, Francisco. AGRONEGÓCIO X AGRICULTURA FAMILIAR. AgroLei. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rtXHCXtMSVU&t=195s. Acesso em: 15 ago. 2021

[xiv] CHICAMISSE, Augusto. AGRONEGÓCIO EM AFRICA – MOÇAMBIQUE. Os Primos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f7tnuNmmdw4. Acesso em: 23 ago. 2021.

[xv] BRASIL DESTINA U§ 2,3 MILHÕES PARA DESENVOLVER AGRICULTURA NA ÁFRICA. DW. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/brasil-destina-us-23-milh%C3%B5es-para-desenvolver-agricultura-na-%C3%A1frica/a-15755951. Acesso em: 24 ago. 2021.


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