por José Carlos Vaz*

O governo condiciona a renegociação de financiamentos rurais dos produtores afetados pela estiagem1, com as mesmas condições contratadas, à obtenção de “recursos adicionais”.
É o que se depreende da leitura de matéria2 do sempre oportuno Rafael Walendorff, no Valor Econômico de 25 de janeiro de 2022.
2. A base legal
A aludida “necessidade de recursos adicionais” não deve nem pode afetar as relações contratuais entre o produtor, ou cooperativa, e o banco, quando ficar demonstrada a incapacidade de pagamento em decorrência da estiagem (ou qualquer outro evento adverso superior a uma razoável capacidade de prevenção, precaução e gestão).
Demonstrada a frustração de receita, o banco que concedeu o crédito rural deve acatar o pedido de não pagamento, independente de autorização e/ou de alocação de recursos pelo governo, e transferir a exigência para momento futuro, condizente com a capacidade de geração de recursos (aferida com base no histórico do produtor) excedentes às despesas necessárias à continuidade do empreendimento financiado.
Isso decorre do disposto no parágrafo único do artigo 4º da lei 7.843, de 18 de outubro de 1989: “Fica assegurada a prorrogação dos vencimentos de operações rurais, obedecidos os encargos vigentes, quando o rendimento propiciado pela atividade objeto de financiamento for insuficiente para o resgate da dívida, ou a falta de pagamento tenha decorrido de frustração de safras, falta de mercado para os produtos ou outros motivos alheios à vontade e diligência do devedor, assegurada a mesma fonte de recursos do crédito original”.
Essa determinação legal foi contemplada na redação do Manual de Crédito Rural – MCR dada pela Circular 1.536, de 3 de outubro de 1989.
Redação do MCR que foi arbitrariamente alterada a partir de maio de 2021, pelo Conselho Monetário Nacional:
a) até abril de 2021 a prorrogação era “devida”, e a partir de maio passou a ser “autorizada”.
Isso sob a seguinte fundamentação3: “São recorrentes os questionamentos acerca do termo ‘devida’, que pode levar à intepretação equivocada de que a instituição financeira não deve avaliar as peculiaridades existentes em cada operação para decidir se deve ou não proceder à prorrogação. Atualmente, é consenso entre os reguladores de que compete à instituição financeira avaliar caso a caso se de fato o produtor não reúne condições para quitar a dívida. Além disso, é importante pontuar que as prorrogações de dívidas no âmbito do crédito rural, quando realizadas de forma indiscriminada, prejudicam o objetivo de induzir o produtor a gerenciar os riscos de seu empreendimento, por meio da aplicação de mitigadores, com destaque para o seguro”.
Observado o previsto no citado parágrafo único do artigo 4º da lei 7.843/1989, a prorrogação está “assegurada”, e, portanto, não pode deixar de ser “devida”. A redação vigente no MCR 2-6-4 é, assim, ilegal.
Também não procede entender que a prorrogação somente pode ocorrer mediante análise caso-a-caso, e que usando de outros recursos, como, por exemplo, critérios de seleção estabelecidos com base em laudos do seu assessoramento técnico em nível de carteira, a instituição financeira não possa fazer prorrogações via sistemas operacionais, de forma automatizada.
b) a partir de maio de 2021, o Manual de Crédito Rural estabeleceu, como condicionante à prorrogação, que seja demonstrado que a dificuldade de pagamento do devedor é “temporária”. Assim, a instituição financeira deve aferir a “incapacidade de pagamento” no tempo presente, e a “capacidade de pagamento”, no tempo futuro.
A Lei 7.843/1989 não prevê a exigência do cálculo da capacidade de pagamento futura, mas apenas a verificação de insuficiência de rendimentos “para o resgate da dívida”, ou de “falta de pagamento” em decorrência de eventos negativos.
Portanto, condicionar a prorrogação à aferição de capacidade de pagamento é ilegal. É também exigência abusiva e autoritária, pois submete o produtor ainda mais à discricionariedade de um agente financeiro detentor de maior poder econômico.
Mas há quem argumentará4 que a decisão de prorrogar crédito rural deve “ocorrer em função das necessidades do plano” (o “plano” já foi para as calendas, isso é inexequível); e que “a fixação de prazo de reembolso deve observar os ciclos de produção e comercialização normal dos bens produzidos” (novo “prazo” e “ciclos” futuros); e que “não constitui função do crédito rural financiar atividades deficitárias ou antieconômicas” (só que quase todas as dívidas de uma pessoa em banco têm cláusula de vencimento antecipado de outras parcelas e de outras dívidas. Condicionar a prorrogação a cálculo de capacidade de pagamento, além de ilegal e atrasar/complicar a operacionalização do reperfilamento da dívida, pode levar o produtor à insolvência e o empreendimento produtivo à paralisação).
c) Também a partir de maio de 2021, o MCR4 passou a prever outra condicionante ilegal, a de um “limite do valor das parcelas com vencimento no respectivo ano, na instituição financeira”, para operações com lastro em recursos do Funcafé, dos fundos constitucionais, ou de outras fontes e equalizados pelo Tesouro Nacional.
É outro caso de condicionante que excede ao previsto na Lei 7.843/1989, sendo, portanto, também ilegal.
2. A insuficiência de recursos
A prorrogação de dívidas equalizadas pelo Tesouro, bem como as do Funcafé ou dos fundos constitucionais, geram frustrações de receitas e/ou aumento de dispêndios para a União.
Na situação fiscal que está o país, realmente é uma questão preocupante, embora, como destacado acima, não possa ser usada como escusa para a não prorrogação da parcela de crédito rural enquadrada no disposto no parágrafo único do artigo 4º da lei 7.843/1989.
A solução que se aventa é, então, a de autorizar que os saldos das parcelas prorrogadas possam ser deduzidos na apuração dos recursos dos depósitos à vista a serem recolhidos compulsoriamente no Banco Central, mediante aplicação de multiplicadores que adequem a rentabilidade do agente financeiro à que seria obtida na fonte original.
Para as operações com agentes financeiros sem suficiente e adequado volume de recursos dos depósitos à vista contingenciados no Banco Central, seria autorizado que pudessem ceder a parte renegociada de operações para outros bancos, mediante cláusula de recompra obrigatória, com garantias estabelecidas mediante critérios oriundos da autoridade regulatória.
3. A próxima safra
Há produtores que, mesmo com prorrogação de suas dívidas de crédito rural, não terão condições de plantar a próxima safra, por não apresentarem capacidade de pagamento.
Sugere-se quanto a isso que os agentes financeiros sejam autorizados a, caso-a-caso, contratarem o próximo custeio em até 5 parcelas anuais, desde que com recursos não equalizados.
4. Outras sugestões
O Conselho Monetário Nacional poderia, o mais prontamente possível:
a) aumentar a exigibilidade de aplicação em crédito rural ou em CPR/CDCA dos recursos captados via LCA.
b) admitir o uso, em operações de crédito rural com taxas livres, ou em CPR financeiras, de um mecanismo de transferência automática de parte da parcela devida, para exigência em ciclo produtivo futuro, quando seu cálculo efetivo superasse o valor presente de uma determinada quantidade do produto financiado, estabelecida quando da contratação.
c) admitir o cumprimento da exigibilidade da poupança rural e da LCA com operações contratadas com traders, agroindústrias ou fornecedores que alongarem as CPR físicas com vencimento no primeiro semestre de 2022, no caso de produtores prejudicados pela estiagem.
5. Conclusão
Há várias medidas que podem ser adotadas para mitigar a angústia dos produtores rurais vitimados pelas condições climáticas adversas, e viabilizar sua continuidade na atividade.
Qualquer que seja sua forma, o mais importante é que sejam viabilizadas logo, e que tenham fácil operacionalização, pois o sistema financeiro não tem mais agências e funcionários em condições de dar vazão a elevado número de pedidos individuais de prorrogação.
Cabe ressaltar que a matriz de financiamento dos produtores rurais é complexa, e por isso às vezes não basta prorrogar só parte das parcelas do crédito rural, mas um valor suficiente para que o produtor possa vender a produção obtida (liberada do penhor e substituída por outras garantias), pagar as suas CPR e recuperar um pouco do capital próprio.
Para o futuro, é preciso repensar as taxas cobradas dos produtores em períodos de boa rentabilidade, para que se possa constituir um “colchão” para eventuais futuros momentos de perda de receita e de necessidade de alongamento de dívidas. Concomitantemente, deve-se reduzir os custos operacionais do crédito rural e analisar os “spreads” nele auferidos pelos agentes financeiros.

*José Carlos Vaz é Advogado em Brasília-DF. Mestre em Direito Constitucional (Idp-DF) e especialista em Direito Empresarial e Contratos (Uniceub-DF). Membro da União Brasileira dos Agraristas Universitários – UBAU, da Comissão de Crédito Rural e Financiamento do Agronegócio da UBAU, da Comissão de Direito do Agronegócio da OAB-DF, do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM e do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr. Acesse http://www.jcvaz.adv.br
Notas:
- segundo O Estado de São Paulo, de 13 de janeiro de 2022, em matéria de José Maria Tomazela, “seca e onda de calor no Sul e Centro-Oeste já causam perdas de R$ 45 bilhões no agronegócio” e “ao menos 200 municípios gaúchos e as 79 cidades sul-mato-grossenses decretaram situação de emergência devido à seca”.
- em https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2022/01/25/ministerio-precisa-de-mais-verba-para-apoiar-produtor-afetado-pela-seca-diz-secretario.ghtml
- ver o VOTO 350/2020–BCB, de 10 de dezembro de 2020.
- ver o VOTO 23/2021–CMN, de 29 de abril de 2021.
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